quinta-feira, 7 de abril de 2016

Em que sentido admitimos que a Bíblia é a Palavra de Deus? As traduções não a comprometem?

No que concerne à inspiração da Bíblia (theopneutos = inspiraçãoTheo = Deus, pneutos = sopro, 2 Tm  3.16; 2 Pe 1.21), sabe-se que o texto isento de erros, de contradições, de falhas, etc., foi o texto original, ou seja, os autógrafos que não mais existem.  As cópias que vieram depois apareceram com variações de diversos tipos, embora saibamos com certeza, baseados nos manuscritos existentes atualmente, que não há uma variação significativa que comprometa o texto no sentido de compreendê-lo. É comum os críticos do texto bíblico não entenderem ou não levarem em conta que quando no texto ocorrem variações, elas não alteram o sentido do escrito original. É a partir dessa noção que consideramos a Bíblia como a Palavra de Deus. Se as cópias, versões e traduções dela expressam a mensagem divina, podemos afirmar com certeza, que a Bíblia que chegou até nós, é a Palavra de Deus isenta de erros, e que Deus continua falando conosco por meio dessas cópias.
Ao ler uma passagem bíblica sem estar bem atento à ela, em nossas traduções e versões impressas, é possível presumir inicialmente no texto bíblico a possibilidade de contradição, embora possamos denomina-las aparentes contradições. Recentemente, em numa aula na Escola Bíblia Dominical, fiz referência ao seguinte texto paulino sobre a relação dos judeus e gentios com o evangelho:

Porque está escrito: Destruirei a sabedoria dos sábios, E aniquilarei a inteligência dos inteligentes. Onde está o sábio? Onde está o escriba? Onde está o inquiridor deste século? Porventura não tornou Deus louca a sabedoria deste mundo? Visto como na sabedoria de Deus o mundo não conheceu a Deus pela sua sabedoria, aprouve a Deus salvar os crentes pela loucura da pregação. Porque os judeus pedem sinal, e os gregos buscam sabedoria; Mas nós pregamos a Cristo crucificado, que é escândalo para os judeus, e loucura para os gregos. Mas para os que são chamados, tanto judeus como gregos, lhes pregamos a Cristo, poder de Deus, e sabedoria de Deus. (1 Co 1.19-24).

Interpretando o texto supracitado, expliquei que os judeus pediam sinal porque, como ortodoxos espectadores da vinda do Messias, eles buscavam provas, evidências da divindade de Cristo. E os gregos buscavam sabedoria porque tinham uma tradição filosófica, amparados sempre em explicações racionais. Ao se apresentar como o Messias, Jesus Cristo se tornou escândalo para os judeus – que primavam pela prova, pelo sinal – e loucura para os gregos – que primavam pela racionalidade. Porém, para nós, diz Paulo, Cristo não é nem escândalo, nem loucura, mas poder de Deus e sabedoria de Deus.
Um determinado aluno questionou: e como fica o texto de Romanos 12.1 que nos mostra a necessidade de um “culto racional”? A lógica daquela pergunta era a seguinte: se não enfatizamos a racionalidade (como queriam os gregos), por que Paulo nos conclama a usá-la falando em termos de “culto racional”?
Respondendo à pergunta: a ideia da expressão paulina não é um uso estrito da razão, ou da racionalidade, para se explicar em termos filosóficos a postura santa no momento do culto individual e intrínseco. Até porque a expressão “culto racional” não é o mesmo de “culto devocional”. Ali há uma conclamação para apresentar o corpo em “sacrifício vivo, santo e agradável a Deus”. Ou seja – usando sinônimos da ideia – é preciso se apropriar de uma postura “razoável, adequada, sensata, conveniente, aceitável, ou logicamente plausível” para estar diante de Deus. Somente essa atitude pode ser qualificada como culto à Deus. Um olhar comparativo das versões desse texto nos auxilia. Vejamos Romanos 12.1 em algumas dessas versões:
A Vulgata Latina diz: “rationabile obsequium vestrum”, isto é, “o vosso culto racional”. Por ter se servido dessa tradução latina, e do Textus Receptus, João Ferreira de Almeida traduziu esse versículo usando a mesma expressão, pois lemos na versão da Bíblia Almeida Corrigida Fiel: “que é o vosso culto racional”. Da mesma forma, temos na King James: “{which is} your reasonable servisse” (“que é o vosso culto racional”). Seguindo a mesma ideia, a NVI diz: “este é o culto racional de vocês”.

No chamado Textus Receptus (a compilação dos manuscritos bizantinos em grego que foram a base para traduções como a Bíblia de Lutero, a King James, bem como outras traduções protestantes como a própria tradução portuguesa de Almeida) encontramos no final de Romanos 12.1 o seguinte: “θεω την λογικην λατρειαν υμων”. “λογικην” transliterado é “Logicên”, um termo próximo de “lógica”, e que traduzido é “razão” ou “razoável”. E o grego moderno diz: “ητις ειναι η λογικη σας λατρεια”, ou seja, “que é o vosso culto racional”, pois “λογικη” é traduzido por “razoável”. Neste caso, me parece que a NIV (NVI em inglês) se aproximou melhor da ideia do versículo. Nessa versão, temos: “this is your true and proper worship” (“esta é a sua adoração verdadeira e adequada”). Dessa forma, embora no texto traduzido ocorram variações, elas não alteram o sentido do escrito original, e o contexto do versículo nos permite a compreensão da mensagem divina.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

A Ideologia de Gênero - resumo histórico

Há um documento intitulado "Requerimento de Informação", do sr. Izalci (um deputado), de maio de 2015, encaminhado ao ministro da educação, cujo conteúdo refere-se a um outro documento do CONAE (Conferência Nacional de Educação) em que se definiu a ideologia de gênero como diretriz obrigatória para o PNE (Plano Nacional de Educação). A justificativa do "Requerimento de Informação" traz uma dissertação rica em dados históricos sobre esse tema. Vou compartilhar abaixo parte da justificativa (que traz o resumo histórico), a fim de que possamos estar alertas quanto ao tema. O texto é longo, mas vale a pena ficar informado!

JUSTIFICAÇÃO

"A ideologia de gênero adquiriu sua configuração atual no início dos anos 90, na Universidade de Berkeley, com a obra da professora Judith Butler O Problema do Gênero [Judith Butler: Gender Trouble, Feminism and the Subversion of Identity, 1990, Routledge, New York]. Logo em seguida o conceito foi ardilosamente introduzido por meio do trabalho das Fundações Internacionais na Conferência sobre a Mulher promovida pela ONU em Pequim. A Conferência supostamente trataria da discriminação contra as mulheres, mas em vez de falar-se de discriminação sexual, repetiu-se mais de 200 vezes, sem definição de termos, a nova expressão “discriminação de gênero”. Tanto na conferência como nas pré-conferências os delegados de numerosos países exigiram que o conceito de gênero fosse claramente definido antes do documento ser apresentado ou aprovado, mas as comissões responsáveis insistiram repetidas vezes que o termo era auto-evidente e não necessitaria ser definido. O conceito, porém, foi finalmente definido em 2006, quando duas ONGs européias, a International Commission of Jurists e a International Service for Human Rights, convocaram 29 especialistas de 25 países, incluindo a brasileira Sônia Correa, para uma Conferência a ser realizada em Yogyakarta, na Indonésia, para

“trazerem maior claridade e coerência às obrigações sobre direitos humanos dos Estados”. http://www.icj.org/yogyakarta-principles/

A partir de Yogyakarta foram definidos os termos “identidade de gênero” e “orientação sexual”. Apesar da conferência ter sido convocada por duas ONGs e não contar com delegados oficiais de nenhum país, esta tem sido mencionada, na prática, como se contivesse princípios indeclináveis de uma convenção internacional aprovado pela comunidade das nações.

A ideologia, entretanto, já havia iniciado suas construções nos anos 80, antes de Butler, quando o conceito de gênero passou a ser adotado pelo movimento marxista e feminista, que via nesta teoria uma justificação científica para as teses desenvolvidas inicialmente por Karl Marx e Friedrich Engels.

Conforme atesta uma amplíssima literatura que poucas vezes é levada ao grande público, a doutrina marxista sustenta ser impossível implantar a revolução socialista sem que antes se destrua a família. Antes mesmo que iniciasse a redação do Capital, Marx escreveu na sua obra “A Ideologia alemã”:

A propriedade privada somente poderá ser suprimida quando a divisão do trabalho puder ser suprimida. A divisão do trabalho, porém, na sua origem, não é nada mais do que a divisão do trabalho no ato sexual, que mais tarde se torna a divisão do trabalho que se desenvolve por si mesma. A divisão do trabalho, por conseguinte, repousa na divisão natural do trabalho na família e na divisão da sociedade em diversas famílias que se opõem entre si, e que envolve, ao mesmo tempo, a divisão desigual tanto do trabalho como de seus produtos, isto é, da propriedade privada, que já possui seu germe na sua forma original, que é a família, em que a mulher e os filhos são escravos do marido” [Karl Marx e Friedrich Engels: A Ideologia Alemã].

Nos últimos anos de sua vida, Marx pôde aprofundar, graças aos trabalhos do antropólogo americano Morgan, sua concepção sobre a família, recolhida finalmente no livro assinado por Engels “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado”. Nesta obra Engels, seguindo Marx, sustentava que nos primórdios da história não teria existido a instituição que hoje denominamos de família. A vida sexual era totalmente livre e os homens relacionavam-se sexualmente com todas as mulheres. Deste modo, as crianças somente conheciam quem eram as suas mães, mas não sabiam quem fossem os seus pais. Mais tarde, à medida em que a sociedade passou de caçadora a agricultora, a humanidade começou a acumular riqueza e os homens, desejando deixar as novas fortunas como herança à sua descendência, para terem certeza de quem seria o eu herdeiro, fora obrigados a forçar as mulheres a não mais se relacionarem com outros parceiros. Com isto transformaram as mulheres em propriedade sexual e assim teriam surgido as primeiras famílias, fruto da opressão do homem sobre a mulher, e com a qual se teria iniciado a luta de classes. A conclusão óbvia desta tese, afirmada como absoluta certeza, visto que confirmava as teorias já levantadas pelo jovem Marx, é que não poderia haver revolução comunista duradoura sem que a concomitante destruição da família.

As teorias de Marx sobre a família foram levadas à prática pela Revolução Leninista e aprofundadas pela Escola de Frankfurt. Fazendo um balanço sobre a revolução russa de 1917, Kate Millett escreve, em sua obra “Sexual Politics”:

A União Soviética realizou um esforço consciente para eliminar o patriarcado e reestruturar a sua instituição mais básica, a família. Depois da revolução foram instituídas todas as leis possíveis para libertar os indivíduos das exigências da família: matrimônio livre e divórcio, contracepção e aborto a pedido. Mais do que tudo, as mulheres e as crianças foram libertadas do poder econômico do marido. Debaixo do sistema coletivista, a família começou a desintegrar-se segundo as próprias linhas sob as quais havia sido construída. Todas as providências legais foram tomadas para promover a igualdade política e econômica. Mas, mesmo com tudo isso, a experiência soviética falhou e foi abandonada. Nos anos trinta e quarenta a sociedade soviética voltou a assemelhar-se às sociedades patriarcais reformadas dos países ocidentais.” [Kate Millett: Sexual Politics, 1969, Rupert Hart-Davis, London].

 Nos anos 30 a Escola de Frankfurt aprofundou a ligação entre a revolução marxista e a destruição da família. A revolução, segundo escreve Karl Korch no livro “Marxismo e Filosofia”, obra que deu início à Escola de Frankfurt, deve dar-se no nível econômico, mas as superestruturas política e cultural impedem a reestruturação econômica que se inauguraria com a implantação da ditadura do proletariado. Conseqüentemente, para possibilitar a revolução socialista, é necessário desenvolver concomitatemente um amplo trabalho de destruição da política e da cultura.

O modo pelo qual seria possível destruir a cultura para possibilitar a revolução socialista foi detalhadamente exposto por Max Horkeimer, o principal dirigente da Escola de Frankfurt, no seu ensaio “Autoridade e Família”, publicado 1936. Segundo ele, o que impede a destruição da cultura é a autoridade, e o que condiciona nos homens a autoridade é precisamente a família:

entre as relações que influem decididamente no modelamento psíquico dos indivíduos, a família possui uma significação de primeira magnitude. A família é o que dá à vida social a indispensável capacidade para a conduta autoritária de que depende a existência da ordem burguesa” [Max Horkheimer: Autoridade e Família, 1936, republicado posteriormente in Teoria Critíca, 1968].

Segundo Horkheimer, a capacidade da família em impor autoridade é tão notável que chega ao ponto de tornar impensáveis as relações sexuais entre mãe e filhos e entre irmãos e irmãs, apesar destes indivíduos de sexos diferentes passarem anos seguidos vivendo debaixo do mesmo teto, algo simplesmente inconcebível se não ocorresse dentro da estrutura ambiente familiar:

não somente a vida sexual dos esposos se cerca de segredo diante dos filhos, como também da ternura que o filho experimenta para com a mãe deve ser proscrito todo impulso sexual; ela e a irmã têm direito apenas a sentimentos puros, a uma veneração e uma estima imaculadas” [Max Horkheimer: Autoridade e Família, 1936, in Teoria Critíca, 1968].

Assim, afirma Horkheimer:

a subordinação ao imperativo categórico do dever foi, desde o início, o fim consciente da família burguesa. Os países que passaram a dirigir a economia, principalmente a Holanda e a Inglaterra, dispensaram às crianças uma educação cada vez mais severa e opressora. A família destacou-se sempre com maior importância na educação da submissão à autoridade. A força que o pai exerce sobre o filho é apresentada como relação moral, e quando a criança aprende a amar o seu pai de todo o coração, está na realidade recebendo sua primeira iniciação na relação burguesa de autoridade. Obviamente estas relações não são conhecidas em suas verdadeiras causas sociais, mas encobertas por ideologias religiosas e metafísicas que as tornam incompreensíveis e fazendo parecer a família como algo ideal até mesmo em uma modernidade em que, comparada com as possibilidades pedagógicas da sociedade, a família somente oferece condições miseráveis para a educação humana. Na família, o mundo espiritual em que a criança cresce está dominada pela idéia do poder exercido de alguns homens sobre os outros, pela idéia do mandar e do obedecer” [Max Horkheimer: Autoridade e Família, 1936, in Teoria Critíca, 1968].

Mas se a revolução russa e a Escola de Frankfurt apontaram claramente o motivo pelo qual a destruição da família seria tão central para o êxito da revolução socialista, não explicaram, todavia, como esta deveria ser realizada. De fato, como já notamos, apesar de todo o empenho e recursos utilizados, nem a revolução russa conseguiu dissolver a família. Nos anos 70, Kate Millett, a mesma que acabamos de mencionar, assim explicava as causas pelas quais Lênin não havia conseguido abolir a família:

A causa mais profunda para isto reside no fato de que, além da declaração de que a família compulsória estava extinta, a teoria Marxista falhou ao não oferecer uma base ideológica suficiente para uma revolução sexual e foi notavelmente ingênua em relação à força histórica e psicológica do patriarcado. Engels havia escrito apenas sobre a história e a economia da família patriarcal, mas não investigou os hábitos mentais nela envolvidos, e até mesmo Lenin admitiu que a revolução sexual não era adequadamente compreendida. Com efeito, no contexto de uma política sexual, as transformações verdadeiramente revolucionárias deveriam ser a influência, à escala política, sobre as relações entre os sexos. Justamente porque o período em questão não viu concretizar-se as transformações radicais que parecia prometer, conviria definir aquilo que deveria ser uma revolução sexual bem sucedida. Uma revolução sexual exigiria, antes de tudo o mais, o fim das inibições e dos tabus sexuais, especialmente aqueles que mais ameaçam o casamento monogâmico tradicional: a homossexualidade, a ilegitimidade, as relações pré- matrimoniais e na adolescência. Isto permitiria uma integração de subculturas sexuais, uma assimilação de ambos os lados da experiência humana até aqui excluídos da sociedade. Da mesma forma, seria necessário reexaminar as características definidas como masculinas e femininas. O desaparecimento do papel ligado ao sexo e a total independência econômica da mulher destruiriam ao mesmo tempo a autoridade e a estrutura econômica. Parece improvável que tudo isto possa acontecer sem um efeito dramático sobre a família patriarcal” [Kate Millett: Sexual Politics, 1969, Rupert Hart-Davis, London].

Logo após Kate Millett haver escrito estas linhas, cientistas e filósofos começaram a desenvolver aquilo que é considerado, pelo menos até o momento, como a solução definitiva para o problema da família. Não é nada mais do que aquilo que hoje conhecemos como ideologia de gênero. O conceito de gênero foi desenvolvido pela primeira vez no final dos anos 60 pelo Dr. John Money, psicólogo neozelandês professor na John Hopkins University de Baltimore.

Dr. Money sustentou que a percepção que as pessoas tem de sua própria sexualidade, à qual denominou de identidade de gênero, dependeria da educação recebida e poderia ser diferente de seu sexo biológico. Ao deparar-se com um recém nascido que havia sofrido uma amputação do pênis, e que possuía um irmão gêmeo univitelino, Money recomendou aos pais que castrassem o bebê e educassem o primeiro como mulher e o segundo como homem, sem que ambos soubessem de suas diferenças de nascença. A experiência fracassou completamente, uma vez que o gêmeo que havia sido educado para ser mulher, desde tenra idade, rasgava seus vestidos femininos, mais tarde passou a acusar os pais de lavagem cerebral e, por volta dos quinze anos, ameaçou suicidar-se se não lhe permitissem comportar-se como homem. John Money, entretanto, publicava diversos trabalhos na literatura especializada considerando a experiência como um sucesso e a comprovação definitiva da teoria de gênero.

Até poucos anos atrás a palavra gênero significava a atribuição de um caráter masculino ou feminino a classes de palavras tais como os substantivos e adjetivos. Dizia-se que uma palavra seria masculina, feminina ou neutra, ainda que o objeto correspondente, como um caderno ou uma mesa, não fosse um ente sexuado. Na língua inglesa, o termo correspondente ‘gender’, poderia ainda, secundariamente, ser entendido como sinônimo genérico de sexo; neste outro sentido, gênero poderia ser tanto o sexo masculino ou feminino, sem especificação. Mas, graças ao trabalho do Dr. John Money, o termo passou a perder este sentido secundário de sexo em geral, desvinculou-se da biologia e passou a referir-se a um papel socialmente construído. Assimilado, logo em seguida, durante a década dos anos 80, pelas teóricas do feminismo, passou a ser utilizado pelo movimento feminista para promover a revolução marxista.

Foi, porém, Judith Butler quem apresentou, no início dos anos 90, o conceito filosófico moderno de gênero, sob a forma que poderia ser aplicado, através do movimento feminista, para conduzir à destruição da família, necessária para promover a revolução socialista. Segundo Butler, quando as feministas se pensam a si mesmas como mulheres, já estão com isto, construindo um discurso que as impedem de emancipar-se dos homens. As feministas não deveriam mais falar da mulher como sujeito do seu movimento, mas deveriam, em vez disso, substituir tanto a feminilidade como a masculinidade pelo conceito amorfo e variável de gênero. Conforme explicado em sua obra “O Problema do Gênero”,

Durante a maior parte do tempo a teoria feminista supôs que haveria uma identidade existente, entendida através da categoria da mulher, que constituía o sujeito para o qual se construía a representação política. Mas recentemente esta concepção da relação entre a teoria feminista e a política foi questionada a partir de dentro do próprio discurso feminista. O próprio sujeito “mulher” não pode ser mais entendido em termos estáveis ou permanentes. Há uma farta literatura que mostra que há muito pouco acordo sobre o que constitui, ou deveria constituir, a categoria “mulher”. O filósofo Michel Foucault mostra que os sistemas jurídicos de poder produzem os sujeitos que eles em seguida passam a representar. Nestes casos, recorrer não criticamente a um sistema como este para emancipar as mulheres é obviamente auto sabotador. A denúncia de um patriarcado universal não goza mais da mesma credibilidade de outrora, mas é muito mais difícil desconstruir a noção de uma concepção comum de mulher, que é conseqüência do quadro do partriarcado. A construção da categoria “mulher” como um sujeito coerente é, no fundo, uma reificação de uma relação de gênero. E esta reificação é exatamente o contrário do que pretende o feminismo. A categoria “mulher” alcança estabilidade e coerência somente no contexto da matriz heterossexual. É necessário, portanto, um novo tipo de política feminista para contestar as próprias reificações de gênero e de identidade, uma nova política que fará da construção variável da identidade não apenas um pré-requisito metodológico e normativo, mas também um objetivo político. Paradoxalmente o feminismo somente poderá fazer sentido se o sujeito “mulher” não for assumido de nenhum modo” [Judith Butler: Gender Trouble, feminism and tjhe subsversion of identity, 1990, Routledge, New York].

A idéia de que, para a revolução socialista seria necessário que as mulheres não mais se assumissem como mulheres não era nova nos anos 90. A novidade introduzida por Butler está no modus operandi através do conceito de ‘gênero’. Segundo Butler, a transição seria politicamente possível através da introdução do conceito de gênero inicialmente desenvolvido por Money. Mas a idéia de fundo já estava plenamente desenvolvida alguns anos antes de Butler, embora sem a intermediação do conceito de gênero, na obra “A Dialética do Sexo”, da feminista marxista Shulamith Firestone:

Para falar sobre as alternativas revolucionárias, é necessário começar por dizer que as mulheres, no plano biológico, são diferenciadas dos homens. A natureza produziu a desigualdade fundamental, que foi, mais tarde, consolidada e institucionalizada, em benefício dos homens. As mulheres eram a classe escrava que mantinha a espécie, a fim de que a outra metade fosse liberada para o trabalho, admitindo-se os aspectos escravizantes disso, mas salientando todos os aspectos criativos. Esta divisão natural do trabalho continuou somente à custa de um grande sacrifício cultural: os homens e as mulheres desenvolveram apenas uma metade de si mesmos, em prejuízo da outra metade. A divisão da psique em masculina e feminina, estabelecida com o fim de reforçar a divisão em função da reprodução, resultou trágica. A hipertrofia do racionalismo do impulso agressivo e a atrofia da sensibilidade emocional nos homens resultaram em guerras e em desastres culturais. O emocionalismo e a passividade das mulheres aumentou o seu sofrimento. Sexualmente os homens e as mulheres foram canalizados para uma heterossexualidade altamente organizada, nos tempos, nos lugares, nos procedimentos e até nos diálogos. Deve-se, portanto, propor, em primeiro lugar, a distribuição do papel da nutrição e da educação das crianças entre a sociedade como um todo, tanto entre os homens, quanto entre as mulheres. Estamos falando de uma mudança radical. Libertar as mulheres de sua biologia significa ameaçar a unidade social, que está organizada em torno da sua reprodução biológica e da sujeição das mulheres ao seu destino biológico, a família. Em segundo lugar, a segunda exigência será a total autodeterminação, incluindo a independência econômica, tanto das mulheres quanto das crianças. É por isso que precisamos falar de um socialismo feminista. Com isso atacamos a família em uma frente dupla, contestando aquilo em torno de que ela está organizada: a reprodução das espécies pelas mulheres, e sua conseqüência, a dependência física das mulheres e das crianças. Eliminar estas condições já seria suficiente para destruir a família, que produz a psicologia do poder. Contudo, nós a destruiremos ainda mais. É necessário, em terceiro lugar, a total integração das mulheres e das crianças em todos os níveis da sociedade. E, se as distinções culturais entre homens e mulheres e entre adultos e crianças forem destruídas, nós não precisaremos mais da repressão sexual que mantém estas classes diferenciadas, sendo pela primeira vez possível a liberdade sexual “natural”. Assim, chegaremos, em quarto lugar, à liberdade sexual para que todas as mulheres e crianças possam usar a sua sexualidade como quiserem. Não haverá mais nenhuma razão para não ser assim. Em nossa nova sociedade a humanidade poderá finalmente voltar à sua sexualidade natural “polimorficamente diversa”. Serão permitidas e satisfeitas todas as formas de sexualidade. A mente plenamente sexuada tornar-se-ia universal” [Shulamith Forestone: The Dialetic of Sex, 1970, Bantam Books, New York].

Faltava ainda, entretanto, o mais importante para que a idéia se tornasse realidade política. Havia o problema prático de como introduzir estas idéias, e especialmente a idéia de gênero, já identificada como capaz de conduzir a humanidade à “mente polimorficamente sexuada que destruiria a família”, para arena política. Tal como formuladas por Shulamith Firestone e Judith Butler, estas idéias não eram politicamente viáveis e somente um pequeno punhado de revolucionárias radicais seriam capazes de aceitá-las. O dilema foi finalmente resolvido na Conferência da ONU, realizada em Pequim no ano de 1995, para tratar sobre a discriminação contra as mulheres.

A Conferência de Pequim estava programada para discutir e aprofundar a “Convenção sobre a Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher”, já aprovada em 1979 pela Assembléia Geral da ONU. A comissão organizadora da Conferência de Pequim, habilmente substituiu no documento a ser debatido os conceitos de ‘mulher’ e ‘discriminação contra a mulher’ por ‘gênero’ e ‘discriminação de gênero’, mas de tal modo que, no contexto do documento, todas estas expressões pareceriam significarem sinônimos. As palavras foram deliberadamente utilizadas para sugerir que “gênero” seria apenas um sinônimo elegante para “sexo”. Se a introdução das novas expressões pudesse ser aceita em um documento oficial da ONU, isto permitiria que, anos mais tarde, gradualmente se passasse a afirmar-se que as expressões aprovadas e não definidas para ‘gênero’ na realidade não eram sinônimas de ‘sexo’. Sutentar-se-ia, progressivamente, que masculino e feminino não seriam sexos, mas gêneros, e que, neste sentido, tanto o masculino como o feminino não seriam realidades biológicas, mas construções meramente culturais que poderiam e deveriam ser modificadas pela legislação até obter não apenas a completa eliminação de todas as desigualdades entre os gêneros, mas o próprio reconhecimento legal da não existência de gêneros enquanto construções definidas e distintas. Neste sentido, não existiria uma forma natural de sexualidade humana e fazer da heterossexualidade uma norma não seria mais do que reforçar os papéis sociais de gênero que Marx e Engels apontaram como tendo sido a origem opressão de uma classe por outra e que estariam na raiz de todo o sofrimento humano.

A Conferência de Pequim foi a segunda, na história da ONU, logo após a Conferência Populacional do Cairo realizada um ano antes, em que um grande quantidade de ONGs foram convidadas a participar oficialmente com um número de representantes muito superior aos dos delegados das nações, que continuavam sendo os únicos com direito a voto. A diferença numérica e a preparação superior dos representantes das ONGs a respeito dos temas tratados, paradigma que continua até hoje e que a própria ONU recomenda que seja adotada pelos governos das nações membros, fez com que, já nas conferências preparatórias para a Conferência principal a ser realizada em Pequim, em vez deter-se na questão da discriminação contra a mulher, objetivo inicial do evento, passou-se a deslocar o foco para a questão, inicialmente aparentemente indiferenciada, da discriminação de gênero. No início os delegados das nações, não acostumados com a expressão, julgavam que gênero fosse um sinônimo mais elegante para a palavra sexo. Mas na última Conferência Preparatória realizada em Nova York, quando os delegados finalmente chegaram à clareza suficiente para poder expressar verbalmente as suas dúvidas e exigir que a palavra ‘gênero’ fosse oficialmente definida, a coordenação da conferência divulgou a seguinte declaração:

Gênero refere-se às relações entre homens e mulheres com base em papéis socialmente definidos que são atribuídos a um ou outro sexo” [Dale O’Leary: The Gender Agenda, Redefining Equality, 1997, Vital Issues Press, Lafayette, Lousiana].

Em vez de resolver o problema, tal declaração somente serviu para criar mais confusão. Ficava claro que gênero não era sinônimo de sexo, mas não era claro quais as implicações que o conceito poderia conter. Ao passarem a exigir uma definição formal de gênero que pudesse ser incorporada oficialmente ao texto da Conferência e votado sem ambigüidades, os proponentes se defrontaram com uma inesperada e bem organizada oposição. As ONGs feministas, representadas pela Sra. Bella Abzug, contestaram que a Conferência jamais daria uma definição formal de gênero, porque o que realmente estava sendo pretendido ao exigir-se tal definição seria

o confinamento e a redução das mulheres às suas características físicas. A palavra gênero significa que o status e os papéis das mulheres e dos homens são socialmente construídos e passíveis de modificação. As mulheres não voltarão a se subordinar a seus papéis inferiores” [Dale O’Leary: The Gender Agenda, Redefining Equality, 1997, Vital Issues Press, Lafayette, Lousiana].

A delegação dos Estados Unidos, além disso, da qual participava Hillary Clinton, na época esposa do presidente do país, afirmou que não seria favorável a uma definição formal de gênero, o que somente traria “complicações positivas”. A própria coordenação da Conferência acabou afirmando que

gênero não tem definição, e não necessita de tê-la” [Dale O’Leary: The Gender Agenda, Redefining Equality, 1997, Vital Issues Press, Lafayette, Lousiana].

O que verdadeiramente está acontecendo é que o conceito de ‘gênero’ está sendo utilizado para promover uma revolução cultural sexual de orientação neo-marxista com o objetivo de extinguir da textura social a instituição familiar. Na submissão do feminino ao masculino através da família, Marx e Engels enxergaram o protótipo de todos os subseqüentes sistemas de poder. Se esta submissão é conseqüência da biologia, não há nada a que se fazer. Mas se ela é uma construção social, ou um gênero, então, a longo prazo, ela poderá ser modificada até chegar-se à uma completa igualdade onde não haverá mais possibilidade de opressão de gênero, mas também onde não haverá mais famílias, tanto as heterossexuais como demais famílias alternativas. Neste contexto a educação caberia como uma tarefa exclusiva do Estado, e não existiria mais traços diferenciais entre o masculino e o feminino. Em um mundo de genuína igualdade, segundo esta concepção, todos teriam que ser educados como bissexuais e a masculinidade e a feminilidade deixariam de ser naturais.

A essência da questão foi muito bem exposta pelo Padre José Eduardo de Oliveira, professor de Teologia Moral, em uma entrevista concedida à agência Zenit e recentemente publicado em livro intitulado “Caindo no Conto de Gênero”:

Sintetizando em poucas palavras, a ideologia de gênero consiste no esvaziamento jurídico do conceito de homem e de mulher, e as conseqüências são as piores possíveis. Conferindo status jurídico à chamada "identidade de gênero" não há mais sentido falar em "homem" e "mulher"; falar-se-ia apenas de "gênero", ou seja, a identidade que cada um criaria para si. Portanto, não haveria sentido em falar de casamento entre um "homem" e uma "mulher", já que são variáveis totalmente indefinidas. Mas, do mesmo modo, não haveria mais sentido falar em "homossexual", pois a homossexualidade consiste, por exemplo, num "homem" relacionar-se sexualmente com outro "homem". Todavia, para a ideologia de gênero o "homem 1" não é "homem", nem tampouco o "homem 2" o seria. Em poucas palavras, a ideologia de gênero está para além da heterossexualidade, da homossexualidade, da bissexualidade, da transexualidade, da intersexualidade, da pansexualidade ou de qualquer outra forma de sexualidade que existir. É a pura afirmação de que a pessoa humana é sexualmente indefinida e indefinível. Os ideólogos de gênero, às escondidas, devem rir às pencas das feministas. Como defender as mulheres, se elas não são mulheres? Qual seria o objetivo, portanto, da "agenda de gênero"? O grande objetivo por trás de todo este absurdo - que, de tão absurdo, é absurdamente difícil de ser explicado – é a pulverização da família com a finalidade do estabelecimento de um caos no qual a pessoa se torne um indivíduo solto, facilmente manipulável. A ideologia de gênero é uma teoria que supõe uma visão totalitarista do mundo” [Padre José Eduardo Oliveira: Caindo o Conto do Gênero, entrevista à Zenit, in http://www.zenit.org/pt/articles/caindono-conto-do-genero]."

Diante dessas informações, creio que dá para traçarmos um perfil da luta em favor da família, tendo ciência de que a educação brasileira está em perigo. Porém, tendo consciência disso, podemos entrar no campo de batalha defendendo a Cosmovisão Cristã e todos os seus princípios, em especial aqueles que tratam da família.


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

GRUPO DE ESTUDO COSMOVISÃO CRISTÃ - 5º ENCONTRO

O 5º encontro do grupo de estudo Cosmovisão Cristã será dia 20/02/2016 (terceiro sábado de fevereiro), as 16:30 horas, na AD de Soledade 2, rua Angra dos Reis, S/N, Natal-RN.

Neste quinto encontro, vamos abordar o tema atual e extremamente necessário MARXISMO CULTURAL. Tomaremos como base para nossas discussões, um texto (curto) e um vídeo (longo).

O texto é Marxismo Cultural: o Cristianismo dentro de uma revolução, do pastor Eguinaldo Hélio de Souza (ele foi articulista da revista Defesa da Fé, consultor do ICP, colaborador da Bíblia Apologética de Estudo, e é autor do livro Quem é o perdido? Em busca de um povo perdido). E o vídeo é Marxismo Cultural, uma palestra de Solano Portela (ele é presbítero da Igreja Presbiteriana, autor de vários livros e escreve no blog O Tempora! O Mores!, junto com Augustus Nicodemus e Mauro Meister).


Segue o texto (e o link original). O vídeo está neste link (Marxismo Cultural - Solano Portela).

Marxismo Cultural: o Cristianismo dentro de uma revolução

O comunismo é o inimigo satânico do cristianismo.
A. W. Tozer

Parece que o gigante está acordando, ainda que lentamente, ainda que tardiamente. O tema do Marxismo Cultural está entrando nas pautas e sua nociva influência começa agora a ser denunciada de modo mais constante. Graças aos esforços iniciais solitários do professor Olavo de Carvalho, a percepção de uma revolução silenciosa em curso começa a fazer barulho. Ele teve coragem de amarrar o gonzo no pescoço do gato e este agora já não consegue se achegar tão sorrateiro. Temos de dar honra a quem a merece.

Que o marxismo é anticristão em sua essência e terrivelmente mortal em sua história não é novidade para qualquer pessoa de bom senso que conheça o mínimo de teologia cristã e um pouco dos acontecimentos do século XX. Mas a estratégia adotada pelos teóricos comunistas para fazer triunfar sua fé ideológica no Ocidente tornou o inimigo invisível e imperceptível. Eles inverteram o percurso. Ao invés da derrubada violenta do poder político para dominar e moldar a cultura, a vitória viria pela transformação da própria cultura, segundo os moldes marxistas. Isso seria feito de modo sutil e lento até que a sociedade estivesse pronta para aceitar passivamente o domínio totalitário comunista como salvação messiânica.

Escola de Frankfurt, Antonio Gramsci (este principalmente), Georg Lukács, entre outros, foram as mentes que conceberam e disseminaram as sementes de morte em nossa cultura. Esses intelectuais pensaram, escreveram e agiram para inserir no Ocidente o pensamento pró marxista. E funcionou. O dragão vermelho do comunismo logo começou a ser acariciado como um gato persa e mimado pelos intelectuais como a cura incontestável para todos os males humanos. 

Hoje, símbolos religiosos são violentados sexualmente em plena praça pública, com o dinheiro público e ninguém acha isso anormal. Em um país com grande maioria cristã, a Bíblia e os valores cristãos são diariamente difamados nas escolas e universidades fomentando discriminação e ódio. E isso diante de uma platéia repleta de cristãos. Total silêncio. 

Apesar de o comunismo ter assassinado mais de cem milhões no século XX, os livros escolares silenciam e dessa forma uma versão mutilada da história é apresentada à nova geração. Ainda que o socialismo produziu miséria por onde passou é louvado nas cátedras como redentor. Ao invés das críticas merecidas, recebe apologia constante. 

E o pior de tudo. Mesmo o marxismo sendo ateu, materialista, darwinista e anticristão, encontrou entre os cristãos não apenas quem o defendesse, mas ainda quem se utilizasse de seus conceitos para fazer teologia! Isso não é amar o inimigo. É se prostituir com ele!

Um país onde você encontra marxismo defendido inconteste em escolas, universidades, livros, jornais, política e igrejas, ao mesmo tempo em que se diz que o comunismo morreu, com certeza é um país onde o marxismo cultural já triunfou.

Se acreditamos que as Escrituras Sagradas revelam a verdade absoluta sobre quem é Deus, sobre quem nós somos e sobre o que o mundo é, percebemos que estamos envolvidos em uma atmosfera pútrida que sufoca nossa alma cristã. Se a moral cristã sobre sexo e família é o padrão divino para a humanidade e estamos sendo criminalizados por acreditar nela, então algo está bem errado. Se o ensino religioso é proibido nas escolas e os símbolos religiosos proibidos em repartições públicas, enquanto algo sinistro como a ideologia de gênero é fomentado e empurrado goela abaixo no sistema educacional, há algo errado.

Nada disso é coincidência. É pura estratégia. É fruto de décadas de marxismo cultural, desde que Antonio Gramsci começou a ser publicado no Brasil na década de 1960. 

Dormimos e o inimigo não semeou o joio. Semeou a erva daninha, o parasita que deseja sufocar e destruir todos os conceitos cristãos que sustentamos. Essa cultura de morte quer nos fazer acreditar que nossas crenças e nossa moral não passam de preconceitos arcaicos a serem escondidos bem fundos em nossas vidas privadas, enquanto eles expõem seus conceitos como verdades eternas.

Quando uma maioria esmagadoramente cristã está vivendo esmagada por uma cultura sutil ou declaradamente anticristã é difícil perceber que alguma coisa está muita errada.

Por Pr. Eguinaldo Hélio de Souza


sexta-feira, 20 de novembro de 2015

GRUPO DE ESTUDO COSMOVISÃO CRISTÃ - 4º ENCONTRO

Nosso 4º encontro será dia 05/12/2015 (primeiro sábado de dezembro), as 16:30 horas, na AD de Soledade 2, rua Angra dos Reis, S/N, Natal-RN.

Para o terceiro encontro do grupo de estudo Cosmovisão Cristã, vamos ampliar a discussão sobre MORALIDADE, retomando uma questão: Como um Deus amoroso ordena a morte de todos os cananeus no Antigo Testamento?. Tomaremos por base a leitura do texto de Willian Lane Craig: O extermínio dos cananeus. Você pode ler neste link (O extermínio dos Cananeus), ou por aqui mesmo.

O extermínio dos Cananeus – Willian Lane Craig
PERGUNTA 1
Nos fóruns, algumas questões muito boas têm sido levantadas sobre a questão da ordem de Deus para que os judeus cometessem “genocídio” contra os povos da terra prometida. Como você apontou em alguns dos seus escritos, esse ato não se encaixa no conceito ocidental de Deus sendo o gentil “Papai do Céu”. Ora, nós podemos certamente encontrar justificativas para aquelas pessoas estarem sob o julgamento de Deus por causa dos seus pecados, por sua idolatria, por sacrificarem suas crianças, etc., Mas uma questão mais difícil é a matança de crianças e bebês. Se as crianças são pequenas, assim como os bebês, elas são inocentes dos pecados cometidos por sua sociedade. Como nós conciliamos essa ordem de Deus para matar as crianças com o conceito de Sua santidade?
PERGUNTA 2

Eu ouvi você justificar a violência no Velho Testamento com base em que Deus usou o exército israelita para julgar os cananeus e sua eliminação pelos Israelitas é moralmente certa já que eles estão obedecendo a ordem de Deus (seria errado eles não obedecerem a ordem de Deus de eliminar os cananeus). Isso se parece um pouco com a maneira como os muçulmanos definem a moralidade e justificam a violência de Maomé e outros atos moralmente questionáveis (muçulmanos definem moralidade como fazer a vontade de Deus). Você vê alguma diferença entre a sua justificação para a violência do Velho Testamento e a justificação islâmica de Maomé e versos violentos do Alcorão? A violência e os atos moralmente questionáveis e os versos do Alcorão são um bom argumento quando se trata de muçulmanos?
Dr. Craig Responde:
"De acordo com o Pentateuco (os primeiros cinco livros do Velho Testamento), quando Deus invocou Seu povo da escravidão no Egito e de volta para a terra de seus antepassados, ele os ordenou que matassem todos os clãs cananeus que viviam na terra (Dt. 7.1-2; 20.16-18). A destruição era para ser completa: cada homem, mulher e criança, eram para ser mortos. O livro de Josué nos conta a história de Israel cumprindo a ordem de Deus cidade após cidade por toda Canaã.
Essas histórias ofendem nossas sensibilidades morais. Ironicamente, porém, nossas sensibilidades morais no ocidente têm sido grandemente, e para muitas pessoas, inconscientemente moldadas por nossa herança Judaico-Cristã, que nos ensinou o valor intrínseco dos seres humanos, a importância de agir justamente e não arbitrariamente, e a necessidade de uma punição adequada ao crime. A própria Bíblia inculca os valores que essas histórias parecem violar.
A ordem para matar todos os povos cananeus é chocante precisamente porque parece não combinar com o retrato de Jeová, o Deus de Israel, que é pintado nas Escrituras Hebraicas. Ao contrário da retórica injuriosa de alguns como Richard Dawkins, o Deus da Bíblia Hebraica é um Deus de justiça, paciente e compassivo.
Você não pode ler os profetas do Velho Testamento sem perceber o profundo cuidado de Deus com pobres, os oprimidos, os abusados, os orfanados, e assim por diante. Deus exige leis justas e juízes justos. Ele literalmente luta para que as pessoas se arrependam de seus caminhos injustos para que Ele não tenha de julgá-los. “Assim como vivo eu, diz o Senhor DEUS, que não tenho prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta do seu caminho, e viva” (Ez. 33.11).
Ele envia um profeta até mesmo à cidade pagã de Nínive por causa de Sua misericórdia pelos seus habitantes, “que não sabem discernir entre a sua mão direita e a sua mão esquerda” (Jonas 4.11). O próprio Pentateuco contém os Dez Mandamentos, um dos maiores códigos morais antigos, que moldou a sociedade ocidental. Até mesmo a restrição “um olho por um olho e um dente por um dente” não era uma prescrição de vingança, mas uma limitação para a punição excessiva de um crime, servindo para moderar a violência.
O juízo de Deus não tem nada de arbitrário. Quando o Senhor anuncia Sua intenção de julgar Sodoma e Gomorra, Abraão ousadamente pergunta,
“Destruirás também o justo com o ímpio? Se porventura houver cinqüenta justos na cidade, destruirás também, e não pouparás o lugar por causa dos cinqüenta justos que estão dentro dela? Longe de ti que faças tal coisa, que mates o justo com o ímpio; que o justo seja como o ímpio, longe de ti. Não faria justiça o Juiz de toda a terra?” (Gn. 18.25).
Como um mercador do Oriente Médio barganhando por uma pechincha, Abraão continuamente diminui seu preço, e a cada vez Deus responde sem hesitação, garantindo a Abraão que se houvesse dez justos na cidade, Ele não a destruiria por causa deles.
Então, o que Jeová está fazendo ao ordenar que os exércitos de Israel exterminem os Cananeus? É precisamente por esperarmos que Javé aja justamente e com compaixão que achamos essas histórias difíceis de entender. Como Ele pode ordenar que soldados massacrem crianças?
Ora, antes de tentar responder essa difícil questão, seria bom que parássemos para nos perguntarmos o que está em jogo aqui. Suponha que concordemos que se Deus (que é perfeitamente bom) existe, Ele não poderia ter dado tal ordem. O que se segue? Que Jesus não ressurgiu dos mortos? Que Deus não existe? Dificilmente! Então, qual deveria ser o problema?
Eu frequentemente vejo apresentadores levantar essa questão como uma refutação do argumento moral para a existência de Deus. Mas isso é claramente incorreto. A declaração de que Deus não poderia ter dado tal ordem não falsifica ou elimina nenhuma das duas premissas do argumento moral que eu defendi:
1- Se Deus não existe, valores morais objetivos não existem.
2- Valores morais objetivos existem.
3- Portanto, Deus existe.
Na verdade, ao pensar que Deus fez algo moralmente errado ao comandar o extermínio dos cananeus, ele afirma a premissa número 2. Então, qual é o problema?
O problema, parece-me, é que se Deus não fosse capaz de dar tal ordem, então as histórias bíblicas devem ser falsas. Ou os incidentes nunca realmente aconteceram, mas são apenas parte do folclore de Israel ou então, se aconteceram, Israel os executou em um fervor nacionalista, pensando que Deus estava ao seu lado, declarando que Deus havia ordenado que cometessem essas atrocidades, quando na verdade Ele não ordenara. Em outras palavras, esse problema é, na verdade, uma objeção à inerrância bíblica.
De fato, ironicamente, muito críticos do Velho Testamento são céticos quanto à ocorrência dos eventos da conquista de Canaã. Eles consideram essas histórias como parte das lendas da fundação de Israel, semelhantes aos mitos de Rômulo e Remo na fundação de Roma. Para esses críticos o problema de Deus pronunciar tal comando desaparece.
Agora, isso põe a questão em uma perspectiva um tanto diferente! A questão da inerrância bíblica é importante, mas não tanto quanto a existência de Deus ou a deidade de Cristo! Se nós cristãos não pudermos achar uma boa resposta para a questão diante de nós e formos, então, persuadidos que tal ordem é inconsistente com a natureza de Deus, então teremos que abrir mão da inerrância bíblica. Mas nós não deveríamos deixar o descrente que levanta essa questão sair pensando que ela implica em mais do que implica.
Eu acredito que um bom começo nesse problema é declarar nossa teoria ética que fundamenta nossos julgamentos morais. De acordo com a versão da ética do mandamento divino que eu tenho defendido, nossas regras morais são constituídas pelas ordens de um Deus santo e amoroso. Uma vez que Deus não dá ordens a si mesmo, Ele não tem deveres morais para cumprir. Ele certamente não está sujeito às mesmas obrigações morais que nós. Por exemplo, eu não tenho o direito de tirar uma vida inocente. Seria homicídio se eu fizesse isso. Mas Deus não tem essa proibição. Ele pode dar e tomar a vida segundo a Sua escolha. Todos nós reconhecemos isso quando acusamos alguma autoridade que, arbitrariamente tira uma vida, de “estar brincando de Deus.” As autoridades humanas se apropriam de direitos que pertencem somente a Deus. Deus não está sob obrigação nenhuma de aumentar minha vida em um segundo. Se Ele quiser me fulminar agora mesmo, é prerrogativa d’Ele.
A implicação disso é que Deus tem o direito de tirar a vida dos cananeus quando Ele achar adequado. Quanto tempo eles vivem e quando eles morrem é decisão d’Ele.
Então, o problema não é que Deus deu um fim às vidas dos cananeus. O problema é que Ele ordenou que os soldados Israelitas dessem um fim a eles. Isso não seria como ordenar que alguém cometesse assassinato? Não, não é. Em vez disso, uma vez que nossos deveres morais são determinados pelas ordens de Deus, ordenar que alguém fizesse isso na ausência da ordem divina é que teria sido assassinato. O ato foi moralmente obrigatório para os soldados Israelitas em virtude da ordem de Deus mesmo que fosse errado fazê-lo em iniciativa própria.
Na teoria do mandamento divino, então, Deus tem o direito de ordenar um ato, que, na ausência de uma ordem divina, teria sido pecado, mas que agora é moralmente obrigatório em virtude daquela ordem.
Certo; mas não é essa ordem contrária à natureza de Deus? Bem, vamos analisar o caso mais de perto. Talvez seja significativo que a história da destruição de Sodoma por Javé — junto com Suas solenes garantias a Abraão de que se houvesse pelo menos dez justos em Sodoma, a cidade não teria sido destruída — forma uma parte do cenário para a conquista de Canaã e a ordem de Javé para que fossem destruídas as cidades lá. A implicação é que os cananeus não são pessoas justas e estavam sob o julgamento de Deus.
Na verdade, antes da escravidão de Israel no Egito, Deus diz a Abraão:
“Sabes, de certo, que peregrina será a tua descendência em terra alheia, e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos... e tornará para cá; porque a medida da injustiça dos Amorreus [um dos clãs cananeus] não está ainda cheia.” (Gn. 15.13,16)
Pense nisso! Deus suspende Seu julgamento dos clãs cananeus por 400 anos porque sua malignidade não havia ainda alcançado o ponto de intolerabilidade! Esse é o Deus paciente que conhecemos nas Escrituras Hebraicas. Ele até mesmo permite que seu próprio povo escolhido sofra em escravidão por quatro séculos antes de determinar que os povos cananeus estejam prontos para o julgamento e chamar Seu povo do Egito.
Na época de sua destruição, a cultura cananéia era, na verdade, pervertida e cruel, se envolvendo em práticas como prostituição ritual e até mesmo sacrifício infantil. Os cananeus deviam ser destruídos “para que não vos ensinem a fazer conforme a todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, e pequeis contra o SENHOR vosso Deus” (Dt. 20.18). Deus tem motivos morais suficientes para Seu julgamento sobre Canaã, e Israel foi meramente o instrumento de Sua justiça, assim como séculos depois Deus usaria as nações pagãs da Assíria e Babilônia para julgar Israel.
Mas, por que tirar a vida de crianças inocentes? A terrível totalidade da destruição foi, sem dúvida, relacionada à proibição da assimilação de noções pagãs por Israel. Ao ordenar a completa destruição dos cananeus, o Senhor diz, “Nem te aparentarás com elas; não darás tuas filhas a seus filhos, e não tomarás suas filhas para teus filhos; Pois fariam desviar teus filhos de mim, para que servissem a outros deuses” (Dt. 7.3,4). Essa ordem faz parte da complexa rede de leis rituais judaicas para separar as práticas puras das impuras. Para a mentalidade ocidental contemporânea, muitos dos regulamentos na lei do Velho Testamento parecem absolutamente bizarros e sem sentido: não misturar linho com lã, não usar os mesmos recipientes para produtos de carne e leite, etc. O ponto principal desses regulamentos é proibir vários tipos de mistura. Linhas claras de distinção estão sendo feitas: isso, e não aquilo. Isso servia como uma diária e tangível lembrança de que Israel é um povo especial separado para o próprio Deus.
Eu conversei uma vez com um missionário hindu que me disse que a mentalidade oriental tem uma profunda tendência para a mistura. Ele disse que os hindus, ao ouvirem o evangelho, sorriem e dizem, “Sub ehki eh, sahib, sub ehki eh!” (“Tudo é Um, sahib, Tudo é Um! [hindus, perdoem minha transliteração!]). Isso fez com que fosse quase impossível alcançá-los, porque até mesmo contradições lógicas eram incorporadas no todo. Ele disse que acreditava que a razão por que Deus deu a Israel tantas ordens arbitrárias sobre puro e impuro era ensiná-los a Lei da Contradição!
Ao estabelecer essas dicotomias fortes e duras, Deus ensinou Israel que qualquer assimilação da idolatria pagã é intolerável. Foi a Sua maneira de preservar a saúde espiritual e a posteridade de Israel. Deus sabia que se essas crianças cananéias fossem mantidas vivas, elas significariam a desintegração de Israel. A matança das crianças cananéias não apenas serviu para prevenir a assimilação da identidade cananéia mas também serviu como uma ilustração esmagadora e tangível de Israel ser separada exclusivamente para Deus.
Além disso, se nós cremos, como de fato cremos, que a graça de Deus é dada a quem morre na infância ou como crianças pequenas, a morte dessas crianças foi na verdade a sua salvação. Nós somos tão casados a uma perspectiva terrena e naturalista que esquecemos que aqueles que morreram tiveram a felicidade de deixar esta terra para uma alegria incomparável no Paraíso. Portanto, Deus não fez a essas crianças nenhum mal ao tirar suas vidas.
Então, contra quem Deus errou ao ordenar a destruição dos cananeus? Não contra os cananeus adultos, pois eles eram corruptos e merecedores do julgamento. Nem contra as crianças, pois elas herdaram a vida eterna. Então, quem está ofendido? Ironicamente, eu acho que a parte mais difícil deste debate é o aparente erro cometido contra os próprios soldados israelitas. Você pode imaginar como seria ter que entrar em alguma casa e matar uma mulher aterrorizada e suas crianças? O efeito brutalizante sobre esses soldados israelitas é perturbador.
Mas então, novamente, estamos pensando de um ponto de vista cristianizado e ocidental. Para pessoas do mundo antigo, a vida já era brutal. A guerra e a violência eram um fato da vida para pessoas vivendo no antigo Oriente Médio. Uma evidência para isso é que as pessoas que contavam essas histórias aparentemente não pensaram nada sobre o que os soldados israelitas foram ordenados fazer (especialmente se essas foram lendas sobre a fundação da nação). Ninguém estava torcendo as mãos por causa dos soldados terem que matar os cananeus; esses que fizeram isso eram heróis nacionais.
Além disso, eu volto ao meu ponto acima. Nada poderia ilustrar tão bem para os israelitas a seriedade de seu chamado como um povo separado somente para Deus. Javé não é alguém com quem se brincar. Ele está falando sério e, se Israel apostatar, a mesma coisa poderia acontecer com eles. Como C.S. Lewis coloca, “Aslan não é um leão domado.”
Ora, como isso se relaciona à jihad islâmica? O Islã vê a violência como a maneira de propagar a fé muçulmana. O Islã divide o mundo em dois campos: a dar al-Islam (Casa de Submissão) e a dar al-harb (Casa de Guerra). A primeira são as terras que foram submetidas pelo Islã; a última são as nações que ainda não foram submetidas. É assim que o Islã realmente vê o mundo!
Em contraste, a conquista de Canaã representou o julgamento de Deus sobre esses povos. O propósito não foi convertê-los ao judaísmo! A guerra não estava sendo usada como um instrumento de propagação da fé judaica. Além disso, o massacre dos cananeus representou uma circunstância histórica incomum, não uma maneira regular de comportamento.
O problema com o Islã, então, não é que este tem a teoria moral errada; mas sim que tem o Deus errado. Se os muçulmanos acham que nossos deveres morais são constituídos pelas ordens de Deus, então eu concordo com eles. Mas muçulmanos e cristãos diferem radicalmente quanto à natureza de Deus. Os cristãos acreditam que Deus é todo-amoroso, enquanto os muçulmanos acreditam que Deus ama apenas os muçulmanos. Alá não tem amor por descrentes e pecadores. Então, eles podem ser mortos indiscriminadamente. Além disso, no Islã a onipotência de Deus pisa em tudo, até mesmo em Sua própria natureza. Ele é, portanto, absolutamente arbitrário em Seu tratamento com a humanidade. Em contraste, os cristãos sustentam que a natureza santa e amorosa de Deus determina o que Ele ordena.
A questão, então, não é “qual é a teoria moral correta?”, mas “qual é o Deus verdadeiro?”
William Lane Craig

terça-feira, 20 de outubro de 2015

GRUPO DE ESTUDO COSMOVISÃO CRISTÃ - 3º ENCONTRO

Nosso 3º encontro será dia 14/11/2015 (segundo sábado de novembro), as 16:30 horas, na AD de Soledade 2, rua Angra dos Reis, S/N, Natal-RN.

Para o terceiro encontro do grupo de estudo Cosmovisão Cristã, vamos tomar como texto base a primeira parte do livro Cristianismo Puro e Simples de C. S. Lewis - Livro I - O certo e o errado como chaves para a compreensão do sentido do universo. Abordaremos o argumento moral para a existência de Deus e questões como: se Deus é bom, porque o mal existe? 
Abaixo, segue o texto de Lewis. (o texto é longo, mas extremamente válido e de boa leitura).


O CERTO E O ERRADO COMO CHAVES PARA A COMPREENSÃO DO SENTIDO DO UNIVERSO

1. A LEI DA NATUREZA HUMANA
Todo o mundo já viu pessoas discutindo. Às vezes, a discussão soa engraçada; em outras, apenas desagradável. Como quer que soe, acredito que podemos aprender algo muito importante ouvindo os tipos de coisas que elas dizem. Dizem, por exemplo: "Você gostaria que fizessem o mesmo com você?"; "Desculpe, esse banco é meu, eu sentei aqui primeiro"; "Deixe-o em paz, que ele não lhe está fazendo nada de mal"; "Por que você teve de entrar na frente?"; "Dê-me um pedaço da sua laranja, pois eu lhe dei um pedaço da minha"; e "Poxa, você prometeu!" Essas coisas são ditas todos os dias por pessoas cultas e incultas, por adultos e crianças.

O que me interessa em todos estes comentários é que o homem que os faz não está apenas expressando o quanto lhe desagrada o comportamento de seu interlocutor; está também fazendo apelo a um padrão de comportamento que o outro deveria conhecer. E esse outro raramente responde: "Ao inferno com o padrão!" Quase sempre tenta provar que sua atitude não infringiu este padrão, ou que, se infringiu, ele tinha uma desculpa muito especial para agir assim. Alega uma razão especial, em seu caso particular, para não ceder o lugar à pessoa que ocupou o banco primeiro, ou alega que a situação era muito diferente quando ele ganhou aquele gomo de laranja, ou, ainda, que um fato novo o desobriga de cumprir o prometido. Está claro que os envolvidos na discussão conhecem uma lei ou regra de conduta leal, de comportamento digno ou moral, ou como quer que o queiramos chamar, com a qual efetivamente concordam. E eles conhecem essa lei. Se não conhecessem, talvez lutassem como animais ferozes, mas não poderiam "discutir" no sentido humano desta palavra. A intenção da discussão é mostrar que o outro está errado. Não haveria sentido em demonstrá-lo se você e ele não tivessem algum tipo de consenso sobre o que é certo e o que é errado, da mesma forma que não haveria sentido em marcar a falta de um jogador de futebol sem que houvesse uma concordância prévia sobre as regras do jogo. Ora, essa lei ou regra do certo e do errado era chamada de Lei Natural. Hoje em dia, quando falamos das "leis naturais", quase sempre nos referimos a coisas como a gravitação, a hereditariedade ou as leis da química. Porém, quando os pensadores do passado chamavam a lei do certo e do errado de "Lei Natural", estava implícito que se tratava da Lei da Natureza Humana. A ideia era a seguinte: assim como os corpos são regidos pela lei da gravitação, e os organismos, pelas leis da biologia, assim também a criatura chamada "homem" possui uma lei própria - com a grande diferença de que os corpos não são livres para escolher se vão obedecer à lei da gravitação ou não, ao passo que o homem pode escolher entre obedecer ou desobedecer à Lei da Natureza Humana.

Examinemos a questão sob outro prisma. Todo homem está continuamente sujeito a diversos conjuntos de leis, mas a apenas um ele é livre para desobedecer. Enquanto corpo, ele é regido pela gravitação e não pode desobedecê-la; se ficar suspenso no ar, sem apoio, fatalmente cairá como cairia uma pedra. Enquanto organismo, está sujeito a diversas leis biológicas, às quais, como os animais, não pode desobedecer. Em outras palavras, o homem não pode desobedecer às leis que tem em comum com os outros seres; mas a lei própria da natureza humana, a lei que não é compartilhada nem pelos animais, nem pelos vegetais, nem pelos seres inorgânicos, a esta lei o ser humano pode desobedecer, se assim quiser. Essa lei era chamada de Lei Natural porque as pessoas pensavam que todos a conheciam naturalmente e não precisavam que outros a ensinassem. Isso, evidentemente, não significava que não se pudesse encontrar, aqui e ali, um indivíduo que a ignorasse, assim como existem indivíduos daltônicos ou desafinados. Considerando a raça humana em geral, no entanto, as pessoas pensavam que a ideia humana de comportamento digno ou decente era óbvia para todos. E acredito que essas pessoas tinham razão. Se assim não fosse, as coisas que dizemos a respeito da guerra não teriam sentido nenhum. Se o Certo não for uma entidade real, que os nazistas, lá no fundo, conhecem tão bem quanto nós e têm o dever de praticar, qual o sentido de dizer que o inimigo está errado? Se eles não têm nenhuma noção daquilo que chamamos de Certo, talvez tivéssemos de combatê-los do mesmo jeito, mas não poderíamos culpá-los pelas suas ações, da mesma forma que não podemos culpar um homem por ter nascido com os cabelos louros ou castanhos.

Sei que certas pessoas afirmam que a ideia de uma Lei Natural ou lei de dignidade de comportamento, conhecida de todos os homens, não tem fundamento, porque as diversas civilizações e os povos das diversas épocas tiveram doutrinas morais muito diferentes.

Mas isso não é verdade. E certo que existem diferenças entre as doutrinas morais dos diversos povos, mas elas nunca chegaram a constituir algo que se assemelhasse a uma diferença total. Se alguém se der ao trabalho de comparar os ensinamentos morais dos antigos egípcios, dos babilónios, dos hindus, dos chineses, dos gregos e dos romanos, ficará surpreso, isto sim, com o imenso grau de semelhança que eles têm entre si e também com nossos próprios ensinamentos morais. Reuni alguns desses dados concordantes no apêndice que escrevi para um outro livro, chamado The Abolition of Man [A abolição do homem]. Porém, para os fins que agora temos em vista, basta perguntar ao leitor como seria uma moralidade totalmente diferente da que conhecemos. Imagine um país que admirasse aquele que foge do campo de batalha, ou em que um homem se orgulhasse de trair as pessoas que mais lhe fizeram bem. O leitor poderia igualmente imaginar um país em que dois e dois são cinco. Os povos discordaram a respeito de quem são as pessoas com quem você deve ser altruísta - sua família, seus compatriotas ou todo o género humano; mas sempre concordaram em que você não deve colocar a si mesmo em primeiro lugar. O egoísmo nunca foi admirado. Os homens divergiram quanto ao número de esposas que podiam ter, se uma ou quatro; mas sempre concordaram em que você não pode simplesmente ter qualquer mulher que lhe apetecer.

O mais extraordinário, porém, é que, sempre que encontramos um homem a afirmar que não acredita na existência do certo e do errado, vemos logo em seguida este mesmo homem mudar de opinião. Ele pode não cumprir a palavra que lhe deu, mas, se você fizer a mesma coisa, ele lhe dirá "Não é justo!" antes que você possa dizer "Cristóvão Colombo". Um país pode dizer que os tratados de nada valem; porém, no momento seguinte, porá sua causa a perder afirmando que o tratado específico que pretende romper não é um tratado justo. Se os tratados de nada valem, se não existe um certo e um errado — em outras palavras, se não existe uma Lei Natural -, qual a diferença entre um tratado justo e um injusto? Será que, agindo assim, eles não deixam o rabo à mostra e demonstram que, digam o que disserem, conhecem a Lei Natural tanto quanto qualquer outra pessoa? Parece, portanto, que só nos resta aceitar a existência de um certo e um errado. As pessoas podem volta e meia se enganar a respeito deles, da mesma forma que às vezes erram numa soma; mas a existência de ambos não depende de gostos pessoais ou de opiniões, da mesma forma que um cálculo errado não invalida a tabuada. Se concordamos com estas premissas, posso passar à seguinte: nenhum de nós realmente segue à risca a Lei Natural. Se existir uma exceção entre os leitores, me desculpo. Será mais proveitoso que essa pessoa leia outro livro, pois nada do que vou falar lhe diz respeito. Feita a ressalva, volto aos leitores comuns.

Espero que vocês não se irritem com o que vou dizer. Não estou fazendo uma pregação, e Deus sabe que não pretendo ser melhor do que ninguém. Só estou tentando chamar a atenção para um fato: o de que, neste ano, neste mês ou, com maior probabilidade, hoje mesmo, todos nós deixamos de praticar a conduta que gostaríamos que os outros tivessem em relação a nós. Podemos apresentar mil e uma desculpas por termos agido assim. Você se impacientou com as crianças porque estava cansado; não foi muito correto naquela questão de dinheiro - questão que já quase fugiu da memória -porque estava com problemas financeiros; e aquilo que prometeu para fulano ou sicrano, ah!, nunca teria prometido se soubesse como estaria ocupado nos últimos dias. Quanto a seu modo de tratar a esposa (ou o marido), a irmã (ou o irmão) — se eu soubesse o quanto eles são irritantes, não me surpreenderia; e, afinal de contas, quem sou eu para me intrometer? Não sou diferente. Ou seja, nem sempre consigo cumprir a Lei Natural, e, quando alguém me adverte de que a descumpri, me vem à cabeça um rosário de desculpas que dá várias voltas ao redor do pescoço. A pergunta que devemos fazer não é se essas desculpas são boas ou más. O que importa é que elas dão prova da nossa profunda crença na Lei Natural, quer tenhamos consciência de acreditar nela, quer não. Se não acreditássemos na boa conduta, por que a ânsia de encontrar justificativas para qualquer deslize? A verdade é que acreditamos a tal ponto na decência e na dignidade, e sentimos com tanta força a pressão da Soberania da Lei, que não temos coragem de encarar o fato de que a transgredimos. Logo, tentamos transferir para os outros a responsabilidade pela transgressão. Perceba que é só para o mau comportamento que nos damos ao trabalho de encontrar tantas explicações. São somente as fraquezas que procuramos justificar pelo cansaço, pela preocupação ou pela fome. Nossas boas qualidades, atribuímo-las a nós mesmos.

São essas, pois, as duas ideias centrais que pretendia expor. Primeiro, a de que os seres humanos, em todas as regiões da Terra, possuem a singular noção de que devem comportar-se de uma certa maneira, e, por mais que tentem, não conseguem se livrar dessa noção. Segundo, que na prática não se comportam dessa maneira. Os homens conhecem a Lei Natural e transgridem-na. Esses dois fatos são o fundamento de todo pensamento claro a respeito de nós mesmos e do universo em que vivemos.

2. ALGUMAS OBJEÇÕES
Se essas duas ideias são nosso fundamento, é melhor que eu deixe esse fundamento bem firme antes de seguir em frente. Algumas das cartas que recebi mostram que um grande número de pessoas tem dificuldade para compreender o que significa essa Lei da Natureza Humana, ou Lei Moral, ou Regra de Bom Comportamento.

Certas pessoas, por exemplo, me escreveram perguntando: "Isso que você chama de Lei Moral não é simplesmente o nosso instinto gregário? Será que ele não se desenvolveu como todos os nossos outros instintos?" Não vou negar que possuímos esse instinto, mas não é a ele que me refiro quando falo em Lei Moral. Todos nós sabemos o que é ser movido pelo instinto — pelo amor materno, o instinto sexual ou o instinto da alimentação: sentimos o forte desejo ou impulso de agir de determinada maneira. E é claro que, às vezes, sentimos o desejo intenso de ajudar outra pessoa. Isso se deve, sem dúvida, ao instinto gregário. No entanto, sentir o desejo intenso de ajudar é bem diferente de sentir a obrigação imperiosa de ajudar, quer o queiramos, quer não. Suponhamos que você ouça o grito de socorro de um homem em perigo. Provavelmente sentirá dois desejos: o de prestar socorro (que se deve ao instinto gregário) e o de fugir do perigo (que se deve ao instinto de auto-preservação). Mas você encontrará dentro de si, além desses dois impulsos, um terceiro elemento, que lhe mandará seguir o impulso da ajuda e suprimir o impulso da fuga. Esse elemento, que põe na balança os dois instintos e decide qual deles deve ser seguido, não pode ser nenhum dos dois. Você poderia pensar também que a partitura musical, que lhe manda, num determinado momento, tocar tal nota no piano e não outra, é equivalente a uma das notas no teclado. A Lei Moral nos informa da melodia a ser tocada; nossos instintos são meras teclas.

Há outra maneira de perceber que a Lei Moral não é simplesmente um de nossos instintos. Se existe um conflito entre dois instintos e, na mente dessa criatura, não há mais nada além desses instintos, é óbvio que o instinto mais forte tem de prevalecer. Porém, nos momentos em que enxergamos a Lei Moral com maior clareza, ela geralmente nos aconselha a escolher o impulso mais fraco. Provavelmente, seu desejo de ficar a salvo é maior do que o desejo de ajudar o homem que se afoga, mas a Lei Moral lhe manda ajudá-lo, apesar dos pesares. E, em geral, ela nos manda tomar o impulso correto e tentar torná-lo mais forte do que originalmente era - não é mesmo? Ou seja, sentimos que temos o dever de estimular nosso instinto gregário, por exemplo, despertando a imaginação e estimulando a piedade, entre outras coisas, para termos força para agir corretamente na hora certa. E evidente, porém, que, no momento em que decidimos tornar mais forte um instinto, nossa ação não é instintiva. Aquilo que lhe diz: "Seu instinto está adormecido, desperte-o!", não pode ser o próprio instinto. O que lhe manda tocar tal nota no piano não pode ser a própria nota.

Há ainda uma terceira maneira de ver a Lei Moral. Se ela fosse um de nossos instintos, seríamos capazes de identificar dentro de nós um impulso que sempre pudéssemos chamar de "bom" segundo a regra da boa conduta. Mas isso não acontece. Não existe nenhum impulso que às vezes a Lei Moral não nos aconselhe a inibir, nem outro que ela não nos encoraje a praticar de vez em quando. E um erro achar que alguns de nossos impulsos, como o amor materno e o patriotismo, são bons, e outros, como o instinto sexual e a agressividade, são maus. Tudo o que queremos dizer é que existem mais situações em que o instinto de luta e o desejo sexual devem ser contidos do que situações em que devemos conter o amor materno e o patriotismo. No entanto, em certas ocasiões, é dever do homem casado encorajar seu impulso sexual, e do soldado fomentar sua agressividade. Existem também oportunidades em que a mãe deve refrear o amor pelo filho, ou um homem deve conter o amor por seu país, para que não cometam injustiça contra outras crianças ou outros países. A rigor, não existem impulsos bons e impulsos maus. Voltemos ao piano. Não há nele dois tipos de notas, as "certas" e as "erradas". Cada uma das notas é certa para uma determinada ocasião e errada para outra. A Lei Moral não é um instinto particular ou um conjunto de instintos; é como um maestro que, regendo os instintos, define a melodia que chamamos de bondade ou boa conduta.

Este tema, aliás, tem grandes consequências práticas. A coisa mais perigosa que podemos fazer é tomar um certo impulso de nossa natureza como critério a ser seguido custe o que custar. Não existe um único impulso que, erigido em padrão absoluto, não tenha o poder de nos transformar em demónios. Talvez você pense que o amor pela humanidade em geral é livre de perigos, mas isso não é verdade. Se deixarmos de lado o senso de justiça, logo estaremos violando acordos e falsificando provas judiciais em prol do "bem da humanidade". Teremos então nos tornado homens cruéis e desleais.

Outras pessoas me escreveram perguntando: "Isso que você chama de Lei Moral não é somente uma convenção social, algo que nos foi incutido pela nossa educação?" Acredito que essas pessoas incorrem num malentendido. Elas tomam por pressuposto que, se aprendemos alguma regra de nossos pais e professores, essa regra é uma simples invenção humana. Mas é evidente que isso não é verdade. Todos aprendemos a tabuada na escola. 12 Uma criança que crescesse sozinha numa ilha deserta não a aprenderia. Mas salta à vista que a tabuada não é apenas uma convenção humana, algo que os seres humanos fizeram para si e que poderiam ter feito diferente se assim quisessem. Concordo plenamente que aprendemos a Regra de Boa Conduta dos pais e professores, dos amigos e dos livros, assim como aprendemos todas as outras coisas. Porém, certas coisas que aprendemos são meras convenções que poderiam ser diferentes - aprendemos a manter-nos à direita na estrada, mas a regra poderia ser manter-se à esquerda -, e outras coisas, como a matemática, são verdades. A pergunta a ser feita é a qual das duas classes pertence a Lei da Natureza Humana.

Há duas razões para afirmar que ela pertence à mesma classe que a da matemática. A primeira, expressa no primeiro capítulo, é que, apesar de haver diferenças entre as ideias morais de certa época ou país e as de outros tempos ou lugares, essas diferenças, na realidade, não são muito grandes - nem de longe são tão importantes quanto a maioria das pessoas imagina -, e, assim, podemos reconhecer a mesma lei dentro de todas elas; ao passo que as meras convenções, como o sentido do trânsito ou os tipos de vestimenta, diferem largamente. A segunda razão é a seguinte: quando você considera as diferenças morais entre um povo e outro, não pensa que a moral de um dos dois é sempre melhor ou pior que a do outro? Será que as mudanças que se constatam entre elas não foram mudanças para melhor? Caso a resposta seja negativa, então está claro que nunca houve um progresso moral. O progresso não significa apenas uma mudança, mas uma mudança para melhor. Se um conjunto de ideias morais não fosse melhor do que outro, não haveria sentido em preferir a moral civilizada à moral bárbara, ou a moral cristã à moral nazista. E ponto pacífico que a moralidade de alguns povos é melhor que a de outros. Acreditamos também que certas pessoas que tentaram mudar os conceitos morais de sua época foram o que chamaríamos de Reformadores ou Pioneiros - pessoas que entenderam melhor a moral do que seus contemporâneos. Pois muito bem. No momento em que você diz que um conjunto de ideias morais é superior a outro, está, na verdade, medindo-os ambos segundo um padrão e afirmando que um deles é mais conforme a esse padrão que o outro. O padrão que os mede, no entanto, difere de ambos. Você está, na realidade, comparando as duas coisas com uma Moral Verdadeira e admitindo que existe algo que se pode chamar de O Certo, independentemente do que as pessoas pensam; e está admitindo que as ideias de alguns povos se aproximaram mais desse Certo que as ideias de outros povos. Ou, em outras palavras: se as suas noções morais são mais verdadeiras que as dos nazistas, deve existir algo - uma Moral Verdadeira — que seja o objeto a que essa verdade se refere. A razão pela qual sua concepção de Nova York pode ser mais verdadeira ou mais falsa que a minha é que Nova York é um lugar real, cuja existência independe do que eu ou você pensamos a seu respeito. Se, quando mencionássemos Nova York, tudo o que pensássemos fosse "a cidade que existe na minha cabeça", como é que um de nós poderia estar mais próximo da verdade do que o outro? Não haveria medida de verdade ou de falsidade. Do mesmo modo, se a Regra da Boa Conduta significasse simplesmente "tudo que cada povo aprova", não haveria sentido em dizer que uma nação está mais correta do que a outra, nem que o mundo se torna moralmente melhor ou pior.

Concluo, portanto, que, apesar de as diferenças de ideias a respeito da Boa Conduta nos levarem a suspeitar de que não existe uma verdadeira Lei de Conduta natural, as coisas que estamos naturalmente propensos a pensar provam justamente o contrário. Algumas palavras antes de terminar: conheci pessoas que exageraram essas diferenças, por terem confundido as diferenças morais com as meras diferenças de crença a respeito dos fatos. Por exemplo, um horíiem me perguntou certa vez: 'Trezentos anos atrás, as bruxas na Inglaterra eram queimadas na fogueira. E isso que você chama de Regra da Natureza Humana ou de Boa Conduta?" Mas é claro que a razão pela qual não se executam mais bruxas hoje em dia é que não acreditamos que elas existam. Se acreditássemos - se realmente pensássemos que existem pessoas entre nós que venderam a alma para o diabo, receberam em troca poderes sobrenaturais e usaram esses poderes para matar ou enlouquecer os vizinhos, ou para provocar calamidades naturais —, certamente concordaríamos que, se alguém merecesse a pena de morte, seriam essas sórdidas traidoras. Não há aqui uma diferença de princípios morais, apenas de enfoque dos fatos. Pode ser que o fato de não acreditarmos em bruxas seja um grande avanço do conhecimento, mas não existe avanço moral algum em deixar de executá-las quando pensamos que elas não existem. Não consideraríamos misericordioso um homem que não armasse ratoeiras por não acreditar que houvesse ratos na casa.

3. A REALIDADE DA LEI
Volto agora ao que disse no final do primeiro capítulo: que a raça humana tem duas características curiosas. Em primeiro lugar, que os homens são assombrados pela ideia de um padrão de comportamento que se sentem obrigados a pôr em prática, o qual se poderia chamar de conduta leal, decência, moralidade ou Lei Natural. Em segundo lugar, que eles não o põem em prática. Alguns de vocês podem se perguntar por que razão chamei de "curioso" isso que pode lhes parecer a coisa mais natural do mundo. Em especial, talvez vocês me tenham achado muito duro com a humanidade; afinal de contas, aquilo que chamei de transgressão da Lei do Certo e do Errado, ou da Lei Natural, significa somente que ninguém é perfeito. E por que, ó céus, esperaria eu o contrário? Essa seria uma boa resposta se tudo o que eu pretendesse fosse medir numa balança a culpa exata que cabe a cada um de nós por não nos termos portado como queremos que os outros se portem. Não é essa, porém, a tarefa que me propus. Nesta investigação, não estou preocupado com a culpa; estou tentando descobrir a Verdade. Desse ponto de vista, a própria ideia de imperfeição, de algo que não é o que deveria ser, tem suas consequências.

Se considerarmos um ente como uma pedra ou uma árvore, ele é o que é e não há sentido em dizer que deveria ser de outro jeito. E claro que podemos dizer que a pedra tem "a forma errada" se pretendemos usá-la para uma construção, ou que uma árvore não é boa porque não faz sombra suficiente. Porém, isso significa tãoso-mente que a pedra ou a árvore não se prestam ao uso que queremos fazer delas; não as culpamos de terem tais ou quais características, a não ser como piada. Temos consciência de que, dado um determinado clima e tipo de solo, a árvore não poderia ser em nada diferente do que é. A árvore que, de nosso ponto de vista, chamamos de "má" obedece às leis de sua natureza tanto quanto a que chamamos de "boa".

Vocês vêem aonde quero chegar? E que o que nós costumamos chamar de leis naturais — o modo pelo qual o clima age sobre a planta, por exemplo — não são leis no sentido estrito da palavra. Essa é só uma maneira de dizer. Quando afirmamos que uma pedra obedece à lei da gravidade, isso não é, por acaso, o mesmo que dizer que essa lei significa apenas "o que a pedra sempre faz"? Não pensamos realmente que a pedra, quando é solta, subitamente se lembra de que tem o dever de cair. Tudo o que queremos dizer é que ela, de fato, cai. Em outras palavras, não podemos ter certeza de que exista algo superior aos fatos mesmos, uma lei que determine o que deve acontecer e que seja diferente do que efetivamen-te acontece. As leis da natureza, quando aplicadas às árvores ou pedras, podem significar apenas "o que a Natureza efetivamente faz". Mas, se nos voltarmos para a Lei da Natureza Humana, ou Lei da Boa Conduta, a história é outra. E ponto pacífico que ela não significa "o que os seres humanos efetivamente fazem", já que, como eu disse antes, muitos deles não obedecem em absoluto a essa lei, e nenhum deles a observa integralmente. A lei da gravidade nos diz o que a pedra faz quando cai; já a Lei da Natureza Humana nos diz o que os seres humanos deveriam fazer e não fazem. Ou seja, quando tratamos de seres humanos, existe algo além e acima dos fatos. Existem os fatos (como os homens se comportam) e também uma outra coisa (como deveriam se comportar). No resto do universo, não há necessidade de outra coisa que não os fatos. Elétrons e moléculas comportam-se de determinada maneira e disso decorrem certos resultados, e talvez o assunto pare aí 11. Os homens, no entanto, comportam-se de determinada maneira e o assunto não pára aí, já que estamos sempre conscientes de que o comportamento deles deveria ser diferente.

Isso é tão singular que ficamos tentados a nos enganar com falsas explicações. Podemos, por exemplo, afirmar que, quando você diz que um homem não deveria fazer o que fez, quer dizer a mesma coisa quando assevera que a pedra tem a forma errada: ou seja, que a atitude dele é inconveniente para você. Mas isso é simplesmente falso. Um homem que chega primeiro no trem e ocupa um bom assento é tão inconveniente quanto um homem que tira minha mala do assento e o ocupa sorrateiramente enquanto estou de costas. Porém, não culpo o primeiro homem, mas culpo o segundo. Não fico bravo - exceto talvez por um breve momento, até recuperar a razão - com uma pessoa que por acidente me faz tropeçar, mas ficot bravo com alguém que tenta me fazer tropeçar de propósito, mesmo que não consiga. Porém, foi a primeira pessoa que efetivamente me machucou, e não a segunda. Às vezes, o comportamento que julgo mau não é inconveniente para mim de modo algum, muito pelo contrário. Na guerra, cada um dos lados beligerantes achará muito útil um traidor do lado oposto; porém, apesar de usá-lo e de recompensá-lo pelos serviços prestados, o considerará um verme em forma humana. Assim, não podemos dizer que o que chamamos de boa conduta alheia é simplesmente a conduta que nos é útil. E, quanto à nossa boa conduta, parece-me óbvio que não se trata da que nos traz vantagens. Trata-se, isto sim, de ficar contente com 30 xelins quando poderíamos ter ganho três libras; de fazer o dever de casa honestamente quando poderíamos copiar o do vizinho; de respeitar uma moça quando gostaríamos de ir para a cama com ela; de não nos afastar de um posto perigoso quando poderíamos escapar para um lugar mais seguro; de manter a palavra quando preferiríamos faltar com ela; de falar a verdade mesmo que assim pareçamos idiotas perante os outros.

Certas pessoas dizem que, apesar de a boa conduta não ser o que traz vantagens para cada pessoa individualmente, pode significar o que traz vantagens para a humanidade como um todo; e, portanto, a coisa não seria tão misteriosa. Os seres humanos, no fim das contas, possuem algum bom senso; percebem que a segurança e a felicidade só são possíveis numa sociedade em que cada qual age com lealdade, e é por perceber isso que tentam conduzir-se com decência. Ora, é perfeitamente verdadeira a ideia de que a segurança e a felicidade só podem vir quando os indivíduos, as classes sociais e os países são honestos, justos e bons uns com os outros. E uma das verdades mais importantes do mundo. Ela só não consegue explicar por que temos tais e tais sentimentos diante do Certo e do Errado. Se eu perguntar: "Por que devo ser altruísta?", e você responder: "Porque isso é bom para a sociedade", poderei retrucar: "Por que devo me importar com o que é bom para a sociedade se isso não me traz vantagens pessoais?", ao que você terá de responder: "Porque você deve ser altruísta" - o que nos leva de volta ao ponto de partida. O que você diz é verdade, mas não nos faz avançar. Se um homem pergunta o motivo de se jogar futebol, de nada adianta responder que é "fazer gois", pois tentar fazer gois é o próprio jogo, e não o motivo pelo qual o jogamos. No final, estamos dizendo somente que "futebol é futebol" - o que é verdade, mas não precisa ser dito. Da mesma forma, se uma pessoa pergunta o motivo de se agir com decência, não vale a pena responder "para o bem da sociedade", pois tentar beneficiar a sociedade, ou, em outras palavras, ser altruísta (pois "sociedade", no fim das contas, significa apenas "as outras pessoas"), é um dos elementos da decência. Tudo o que se estará dizendo é que uma conduta decente é uma conduta decente. Teríamos dito a mesma coisa se tivéssemos parado na declaração de que "As pessoas devem ser altruístas". E é nesse ponto que eu paro. Os homens devem ser altruístas, devem ser justos. Não que os homens sejam altruístas ou gostem de sê-lo, mas que devem sê-lo. A Lei Moral, ou Lei da Natureza Humana, não é simplesmente um fato a respeito do comportamento humano, como a Lei da Gravidade é ou pode ser simplesmente um fato a respeito do comportamento dos ob-jetos pesados. Por outro lado, não é mera fantasia, pois não conseguimos nos desvencilhar dessa ideia; se conseguíssemos, a maior parte das coisas que dizemos sobre os homens seria absurda. Ela também não é uma simples declaração de como gostaríamos que os homens se comportassem para a nossa conveniência, pois o comportamento que taxamos de mau ou injusto nem sempre é inconveniente, e, muitas vezes, é exatamente o contrário. Consequentemente, essa Regra do Certo e do Errado, ou Lei da Natureza Humana, ou como quer que você queira chamá-la, deve ser uma Verdade - uma coisa que existe realmente, e não uma invenção humana. E, no entanto, não é um fato no mesmo sentido em que o comportamento efetivo das pessoas é um fato. Começa a ficar claro que teremos de admitir a existência de mais de um plano de realidade; e que, neste caso em particular, existe algo que está além e acima dos fatos comuns do comportamento humano, algo que no entanto é perfeitamente real - uma lei verdadeira, que nenhum de nós elaborou, mas que nos sentimos obrigados a cumprir.

4. O QUE EXISTE POR TRÁS DA LEI
Vamos fazer um resumo de tudo o que vimos até aqui. No caso das pedras, das árvores e de coisas dessa natureza, o que chamamos de Lei Natural pode não ser nada além de uma força de expressão. Quando você diz que a natureza é governada por certas leis, quer dizer apenas que a natureza, de fato, se comporta de certa forma. As chamadas "leis" talvez não tenham realidade própria, talvez não estejam além e acima dos fatos que podemos observar. No caso do homem, porém, percebemos que as coisas não são bem assim. A Lei da Natureza Humana, ou Lei do Certo e do Errado, é algo que transcende os fatos do comportamento humano. Neste caso, além dos fatos em si, existe outra coisa - uma verdadeira lei que não inventamos e à qual sabemos que devemos obedecer.

Quero considerar agora o que isso nos diz sobre o universo em que vivemos. Desde que o homem se tornou capaz de pensar, ele se pergunta no que consiste o universo e como ele veio a existir. Grosso modo, dois pontos de vista foram sustentados. O primeiro deles é o que chamamos de materialista. Quem o adota afirma que a matéria e o espaço simplesmente existem e sempre existiram, ninguém sabe por quê. A matéria, que se comporta de formas fixas, veio, por algum acidente, a produzir criaturas como nós, criaturas capazes de pensar. Numa chance em mil, um corpo se chocou contra o sol e gerou os planetas. Por outra chance infinitesimal, as substâncias químicas necessárias à vida e a temperatura correta se fizeram presentes num desses planetas, e, assim, uma parte da matéria desse planeta ganhou vida. Depois, por uma longuíssima série de coincidências, as criaturas viventes se desenvolveram até se tornarem seres como nós. O outro ponto de vista é o religioso. Segundo ele, o que existe por trás do universo se assemelha mais a uma mente que a qualquer outra coisa conhecida. Ou seja, é algo consciente e dotado de objetivos e preferências. De acordo com essa visão, esse ser criou o universo. Alguns dos seus desígnios são ocultos, enquanto outros são bastante claros: produzir criaturas semelhantes a si mesmo — quero dizer, semelhantes na medida em possuem mentes. Por favor, não pensem que um destes pontos de vista era sustentado há muito tempo e aos poucos foi cedendo lugar ao outro. Onde quer que tenha havido homens pensantes, os dois pontos de vista sempre apareceram de uma forma ou de outra. Notem também que, para saber qual deles é o correto, não podemos apelar à ciência no sentido comum dessa palavra. A ciência funciona a partir da experiência e observa como as coisas se comportam. Todo enunciado científico, por mais complicado que pareça à primeira vista, na verdade significa algo como "apontei o telescópio para tal parte do céu às 2h20min do dia 15 de janeiro e vi tal e tal fenómeno", ou "coloquei um pouco deste material num recipiente, aqueci-o a uma temperatura X e tal coisa aconteceu". Não pensem que eu esteja desmerecendo a ciência; estou apenas mostrando para que ela serve. Quanto mais sério for o homem de ciência, mais (no meu entender) ele concordará comigo quanto ao papel dela - papel, aliás, extremamente útil e necessário. Agora, perguntas como "Por que algo veio a existir?" e "Será que existe algo - algo de outra espécie — por trás das coisas que a ciência observa?" não são perguntas científicas. Se existe "algo por trás", ou ele há de manter-se totalmente desconhecido para o homem ou far-se-á revelar por outros meios. A ciência não pode dizer nem que tsst ser existe nem que não existe, e os verdadeiros cientistas geralmente não fazem essas declarações. São quase sempre jornalistas e romancistas de sucesso que as produzem a partir de informações coletadas em manuais de ciência popular e assimiladas de maneira imperfeita. Afinal de contas, tudo não passa de uma questão de bom senso. Suponha que a ciência algum dia se tornasse completa, tendo o conhecimento total de cada mínimo detalhe do universo. Não é óbvio que perguntas como "Por que existe um universo?", "Por que ele continua existindo?" e "Qual o significado de sua existência?" continuariam intactas?

Deveríamos perder as esperanças, não fosse por um detalhe. No universo inteiro, existe uma coisa, e somente uma, que nós conhecemos melhor do que conheceríamos se contássemos somente com a observação externa. Essa coisa é o Ser Humano. Nós não nos limitamos a observar o ser humano, nós somos seres humanos. Nesse caso, podemos dizer que as informações que possuímos vêm "de dentro". Estamos a par do assunto. Por causa disto, sabemos que os seres humanos estão sujeitos a uma lei moral que não foi criada por eles, que não conseguem tirar do seu horizonte mesmo quando tentam e à qual sabem que devem obedecer. Alguém que estudasse o homem "de fora", da maneira como estudamos a eletricidade ou os repolhos, sem conhecer a nossa língua e, portanto, impossibilitado de obter conhecimento do nosso interior, não teria a mais vaga ideia da existência desta lei moral a partir da observação de nossos atos. Como poderia ter? Suas observações se resumiriam ao que fazemos, ao passo que essa lei diz respeito ao que deveríamos fazer. Do mesmo modo, se existe algo acima ou por trás dos fatos observados sobre as pedras ou sobre o clima, nós, estudando-os de fora, não temos a menor esperança de descobrir o que ele é.

A natureza da questão é a seguinte: queremos saber se o universo simplesmente é o que é, sem nenhuma razão especial, ou se existe por trás dele um poder que o produziu tal como o conhecemos. Uma vez que esse poder, se ele existe, não seria um dos fatos observados, mas a realidade que os produziu, a mera observação dos fenómenos não pode encontrá-lo. Existe apenas um caso no qual podemos saber se esse "algo mais" existe; a saber, o nosso caso. E, nesse caso, constatamos que existe. Ou examinemos a questão de outro ângulo. Se existisse um poder exterior que controlasse o universo, ele não poderia se revelar para nós como um dos fatos do próprio universo - da mesma forma que o arquiteto de uma casa não pode ser uma de suas escadas, paredes ou lareira. A única maneira pela qual podemos esperar que esta força se manifeste é dentro de nós mesmos, como uma influência ou voz de comando que tente nos levar a ado-tar uma determinada conduta. E justamente isso que descobrimos dentro de nós. Já não deveríamos ficar com a pulga atrás da orelha? No único caso em que podemos encontrar uma resposta, ela é positiva; nos outros, em que não há respostas, entendemos por que não podemos encontrá-las. Suponha que alguém me perguntasse, acerca de um homem de uniforme azul que passa de casa em casa depositando envelopes de papel em cada uma delas, por que, afinal, eu concluo que dentro dos envelopes existem cartas. Eu responderia: "Porque sempre que ele deixa envelopes parecidos na minha casa, dentro deles há uma carta para mim." Se o interlocutor objetasse: "Mas você nunca viu as cartas que supõe que as outras pessoas recebam", eu diria: "E claro que não, e nem quero vê-las, porque não foram endereçadas a mim. Eu imagino o conteúdo dos envelopes que não posso abrir pelo dos envelopes que posso." O mesmo se dá aqui. O único envelope que posso abrir é o Ser Humano. Quando o faço, e especialmente quando abro o Ser Humano chamado "Eu", descubro que não existo por mim mesmo, mas que vivo sob uma lei, que algo ou alguém quer que eu me comporte de determinada forma. E claro que não acho que, se pudesse entrar na existência de uma pedra ou de uma árvore, encontraria exatamente a mesma coisa, assim como não acho que as pessoas da minha rua recebam exatamente as mesmas cartas que eu. Devo concluir que a pedra, por exemplo, tem de obedecer à lei da gravidade - que, enquanto o missivista se limita a aconselhar-me a obedecer à lei da minha natureza, ele obriga a pedra a obedecer às leis de sua natureza pétrea. O que não consigo negar é que, em ambos os casos, existe, por assim dizer, esse missivista, um Poder por trás dos fatos, um Diretor, um Guia.

Não pense que estou indo mais rápido do que estou na realidade. Ainda não estou nem perto do Deus da teologia cristã. Tudo o que obtive até aqui é a evidência de Algo que dirige o universo e que se manifesta em mim como uma lei que me incita a praticar o certo e me faz sentir incomodado e responsável pelos meus erros. Segundo me parece, temos de supor que esse Algo é mais parecido com uma mente do que com qualquer outra coisa conhecida — porque, afinal de contas, a única outra coisa que conhecemos é a matéria, e ninguém jamais viu um pedaço de matéria dar instruções a alguém. E claro, porém, que não precisa ser muito parecido com uma mente, muito menos com uma pessoa. No próximo capítulo, vamos tentar descobrir mais a seu respeito. Apenas uma advertência. Houve muita conversa fajuta a respeito de Deus nos últimos cem anos, e não é isso que tenho a oferecer. Esqueça tudo o que ouviu.

NOTA: Para manter esta seção curta o suficiente para ir ao ar, só mencionei os pontos de vista materialista e religioso. Para completar o quadro, tenho de mencionar o ponto de vista intermediário entre os dois, a chamada filosofia da Força Vital, ou Evolução Criativa, ou Evolução Emergente, cuja exposição mais brilhante e arguta encontra-se nas obras de Bernard Shaw, ao passo que a mais profunda, nas de Bergson. Seus defensores dizem que as pequenas variações pelas quais a vida neste planeta "evoluiu" das formas mais simples à forma humana não ocorreram em virtude do acaso, mas sim pelo "esforço" e pela "intenção" de uma Força Vital. Quando fazem tais afirmações, devemos perguntar se, por Força Vital, essas pessoas entendem algo semelhante a uma mente ou não. Se for semelhante, "uma mente que traz a vida à existência e a conduz à perfeição" não é outra coisa senão Deus, e seu ponto de vista é idêntico ao religioso. Se não for semelhante, qual o sentido, então, de dizer que algo sem mente faça um "esforço" e tenha uma "intenção"? Este argumento me parece fatal para esse ponto de vista. Uma das razões pelas quais as pessoas julgam a Evolução Criativa tão atraente é que ela dá o consolo emocional da crença em Deus sem impor as consequências desagradáveis desta. Quando nos sentimos ótimos e o sol brilha lá fora, e não queremos acreditar que o universo inteiro se reduz a uma dança mecânica de átomos, é reconfortante pensar nessa gigantesca e misteriosa Força evoluindo pelos séculos e nos carregando em sua crista. Se, por outro lado, queremos fazer algo escuso, a Força Vital, que não passa de uma força cega, sem moral e sem discernimento, nunca vai nos atrapalhar como fazia o aborrecido Deus que nos foi ensinado quando éramos crianças. A Força Vital é como um deus domesticado. Você pode tirá-lo de dentro da caixa sempre que quiser, mas ele não vai incomodá-lo em ocasião alguma — todas as coisas boas da religião sem custo nenhum. Não será a Força Vital a maior invenção da fantasia humana que o mundo jamais viu?

5. TEMOS MOTIVOS PARA NOS SENTIR INQUIETOS
Encerrei o último capítulo com a noção de que, na Lei Moral, entramos em contato com algo, ou alguém, acima do universo material. Acho que alguns leitores sentiram um certo desconforto quando cheguei a esse ponto, e pensaram, inclusive, que eu lhes preguei uma peça, embalando cuidadosamente no papel de embrulho da filosofia algo que não passa de mais uma "conversa fiada sobre religião". Talvez você estivesse disposto a me ouvir se eu tivesse novidades para contar; se, porém, tudo se resume à religião, bem, o mundo já experimentou esse caminho e não podemos voltar no tempo. Tenho três coisas a dizer para quem estiver se sentindo assim.

A primeira delas é a respeito de "voltar no tempo". Você pensaria que estou brincando se dissesse que podemos atrasar o relógio e que, se o relógio está errado, é essa a coisa sensata a fazer? Prefiro, entretanto, deixar de lado essa comparação com relógios. Todos nós queremos o progresso. Progredir, porém, é aproximarmo-nos do lugar aonde queremos chegar. Se você tomou o caminho errado, não vai chegar mais perto do objetivo se seguir em frente. Para quem está na estrada errada, progredir é dar meia-volta e retornar à direção correta; nesse caso, a pessoa que der meia-voJta mais cedo será a mais avançada. Todos já tivemos essa experiência com as contas de aritmética. Quando erramos uma soma desde o início, sabemos que, quanto antes admitirmos o engano e voltarmos ao começo, tanto antes chegaremos à resposta correta. Não há nada de progressista em ser um cabeça-dura que se recusa a admitir o erro. Penso que, se examinarmos o estado atual do mundo, é bastante óbvio que a humanidade cometeu algum grande erro. Tomamos o caminho errado. Se assim for, devemos dar meia-volta. Voltar é o caminho mais rápido.

A segunda coisa a dizer é que estas palestras ainda não tomaram o rumo de uma "conversa fiada sobre religião". Não chegamos ainda no Deus de nenhuma religião verdadeira, muito menos no Deus dessa religião específica chamada cristianismo. Tudo o que temos até aqui é Alguém ou Algo que está por trás da Lei Moral. Não lançamos mão da Bíblia nem das igrejas: estamos tentando ver o que podemos descobrir por esforço próprio a respeito deste Alguém. Quero, inclusive, deixar bem claro que essa descoberta é chocante. Temos dois indícios que dão prova desse Alguém. Um deles é o universo por ele criado. Se fosse essa a nossa única pista, teríamos de concluir que ele é um grande artista (já que o universo é um lugar muito bonito), mas que também é impiedoso e cruel para com o homem (uma vez que o universo é um lugar muito perigoso e terrível). O outro indício é a Lei Moral que ele pôs em nossa mente. E uma prova melhor do que a primeira, pois conhecemo-la em primeira mão. Descobrimos mais coisas a respeito de Deus a partir da Lei Moral do que a partir do universo em geral, da mesma forma que sabemos mais a respeito de um homem quando conversamos com ele do que quando examinamos a casa que ele construiu. Partindo desse segundo vestígio, concluímos que o Ser por trás do universo está muitíssimo interessado na conduta correta - na lealdade, no altruísmo, na coragem, na boa fé, na honestidade e na veracidade. Nesse sentido, devemos concordar com a visão do cristianismo e de outras religiões de que Deus é "bom". Mas não vamos apressar o andar da carruagem. A Lei Moral não embasa a ideia de que Deus é "bom" no sentido de indulgente, suave ou condescendente. Não há nada de indulgente na Lei Moral. Ela é dura como um osso. Exorta-nos a fazer a coisa certa e parece não se importar com o quanto essa ação pode ser dolorosa, perigosa ou difícil. Se Deus é como a Lei Moral, ele não tem nada de suave. De nada adianta, a esta altura, dizer que um Deus "bom" é um Deus que perdoa. Estaríamos indo depressa demais. Só uma pessoa pode perdoar, e não chegamos ainda a um Deus pessoal — só a um poder que está por trás da Lei Moral e se parece mais com uma mente do que com qualquer outra coisa. Mas ainda seria improvável dizer que se trata de uma pessoa. Caso se trate de uma pura mente impessoal, não há sentido algum em pedir que ela nos dê uma certa folga e nos desculpe, da mesma forma que não há sentido em pedir que a tabuada seja tolerante com nossos erros de multiplicação. Nesse caminho, encontraremos a resposta errada. Tampouco adianta dizer que, se existe um Deus assim - uma bondade impessoal e absoluta -, você não precisa gostar dele nem se preocupar com ele. Afinal, a questão é que uma parte de nós está ao lado dele e realmente concorda com ele quando desaprova a ganância, as bai-xezas e os abusos humanos. Talvez você queira que ele abra uma exceção no seu caso e o perdoe desta vez; mas no fundo sabe que, a menos que esse poder por trás do mundo realmente deteste inabakvelmente esse tipo de comportamento, ele não pode ser bom. Por outro lado, sabemos que, se existe um Bem absoluto, ele deve detestar quase tudo o que fazemos. Este é o terrível dilema em que nos encontramos. Se o universo não é governado por um Bem absoluto, todos os nossos esforços estão fadados ao insucesso a longo prazo. Se, no entanto, ele é governado por esse Bem, fazemo-nos inimigos da bondade a cada dia e o panorama não parece dar sinais de melhora no futuro. Logo, nosso caso é, de novo, irremediável - inviável com ou sem ele. Deus é o nosso único alento, mas também o nosso terror supremo; é a coisa de que mais precisamos, mas também da qual mais queremos nos esconder. E nosso único aliado possível, e tornamo-nos seus inimigos. Certas pessoas parecem pensar que o encontro face a face com o Bem absoluto seria divertido. Elas devem pensar melhor no que dizem. Estão apenas brincando com a religião. O Bem pode ser o maior refúgio ou o maior perigo, dependendo de como reagimos a ele. E temos reagido mal.

Enfim, a terceira coisa que tinha a dizer. Quando decidi dar todas estas voltas para chegar a meu verdadeiro assunto, nunca tive a intenção de lhes pregar uma peça. Meu motivo foi outro: foi que o cristianismo só tem sentido para quem teve de encarar de frente os temas tratados até aqui. O cristianismo exorta as pessoas a se arrepender e promete-lhes o perdão. Consequentemente (que me conste), ele não tem nada a dizer às pessoas que não têm a consciência de ter feito algo de que devem se arrepender e que não sentem a urgência de ser perdoadas. E quando nos damos conta da existência de uma Lei Moral e de um Poder por trás dessa Lei, e percebemos que nós violamos a Lei e ficamos em dívida para com esse Poder — é só então, e nunca antes disso, que o cristianismo começa a falar a nossa língua. Quando você sabe que está doente, dá ouvidos ao médico. Quando perceber que nossa situação é crítica, começará a entender a respeito do que os cristãos estão falando. Eles nos oferecem uma explicação de por que nos encontramos em nosso estado atual, de odiar o bem e também de amá-lo; de por que Deus pode ser essa mente impessoal oculta por trás da Lei Moral e, ao mesmo tempo, uma Pessoa. Explicam que as exigências dessa lei, que nem eu nem você conseguimos cumprir, foram cumpridas por Alguém, para o nosso bem; que Deus mesmo se fez homem para salvar os homens de sua própria ira. E uma velha história, e se você quiser esmiuçá-la poderá consultar pessoas que, sem dúvida nenhuma, têm mais autoridade do que eu para falar dela. Tudo o que faço é pedir a todos que encarem os fatos — que compreendam as perguntas para as quais o cristianismo pretende oferecer respostas. Os fatos amedrontam. Gostaria de poder falar de coisas mais amenas, mas devo declarar o que penso ser a verdade. Evidentemente, penso que, a longo prazo, a religião cristã traz um consolo indescritível; mas ela não começa assim. Ela começa com o desalento e a consternação que descrevi, e é inútil tentar obter o consolo sem antes passar pela consternação. Na religião, como na guerra e em todos os outros assuntos, o consolo é a única coisa que não pode ser alcançada quando é buscada diretamente. Se você buscar a verdade, encontrará a consolação no final; se buscar o consolo, não terá nem o consolo nem a verdade — terá somente uma melosidade vazia que culminará em desespero. Muitos entre nós já nos recuperamos da euforia de antes da guerra em matéria de política internacional. E hora de fazer a mesma coisa com a religião.

(Fonte: LEWIS, C. S. Cristianismo Puro e Simples. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009.p. 5-44).