Para o terceiro encontro do grupo de estudo Cosmovisão Cristã, vamos ampliar a discussão sobre MORALIDADE, retomando uma questão: Como um Deus amoroso ordena a morte de todos os cananeus no Antigo Testamento?. Tomaremos por base a leitura do texto de Willian Lane Craig: O extermínio dos cananeus. Você pode ler neste link (O extermínio dos Cananeus), ou por aqui mesmo.
O extermínio dos Cananeus – Willian Lane Craig
PERGUNTA 1
Nos fóruns, algumas questões muito boas têm sido levantadas sobre a
questão da ordem de Deus para que os judeus cometessem “genocídio” contra os
povos da terra prometida. Como você apontou em alguns dos seus escritos, esse
ato não se encaixa no conceito ocidental de Deus sendo o gentil “Papai do Céu”.
Ora, nós podemos certamente encontrar justificativas para aquelas pessoas
estarem sob o julgamento de Deus por causa dos seus pecados, por sua idolatria,
por sacrificarem suas crianças, etc., Mas uma questão mais difícil é a matança
de crianças e bebês. Se as crianças são pequenas, assim como os bebês, elas são
inocentes dos pecados cometidos por sua sociedade. Como nós conciliamos essa
ordem de Deus para matar as crianças com o conceito de Sua santidade?
PERGUNTA 2
Eu ouvi você justificar a violência no Velho Testamento com base em que
Deus usou o exército israelita para julgar os cananeus e sua eliminação pelos
Israelitas é moralmente certa já que eles estão obedecendo a ordem de Deus
(seria errado eles não obedecerem a ordem de Deus de eliminar os cananeus).
Isso se parece um pouco com a maneira como os muçulmanos definem a moralidade e
justificam a violência de Maomé e outros atos moralmente questionáveis
(muçulmanos definem moralidade como fazer a vontade de Deus). Você vê alguma
diferença entre a sua justificação para a violência do Velho Testamento e a
justificação islâmica de Maomé e versos violentos do Alcorão? A violência e os
atos moralmente questionáveis e os versos do Alcorão são um bom argumento
quando se trata de muçulmanos?
Dr. Craig Responde:
"De acordo com o Pentateuco (os primeiros cinco livros do Velho
Testamento), quando Deus invocou Seu povo da escravidão no Egito e de volta
para a terra de seus antepassados, ele os ordenou que matassem todos os clãs
cananeus que viviam na terra (Dt. 7.1-2; 20.16-18). A destruição era para ser
completa: cada homem, mulher e criança, eram para ser mortos. O livro de Josué
nos conta a história de Israel cumprindo a ordem de Deus cidade após cidade por
toda Canaã.
Essas histórias ofendem nossas sensibilidades morais. Ironicamente,
porém, nossas sensibilidades morais no ocidente têm sido grandemente, e para
muitas pessoas, inconscientemente moldadas por nossa herança Judaico-Cristã,
que nos ensinou o valor intrínseco dos seres humanos, a importância de agir
justamente e não arbitrariamente, e a necessidade de uma punição adequada ao
crime. A própria Bíblia inculca os valores que essas histórias parecem violar.
A ordem para matar todos os povos cananeus é chocante precisamente
porque parece não combinar com o retrato de Jeová, o Deus de Israel, que é
pintado nas Escrituras Hebraicas. Ao contrário da retórica injuriosa de alguns
como Richard Dawkins, o Deus da Bíblia Hebraica é um Deus de justiça, paciente
e compassivo.
Você não pode ler os profetas do Velho Testamento sem perceber o
profundo cuidado de Deus com pobres, os oprimidos, os abusados, os orfanados, e
assim por diante. Deus exige leis justas e juízes justos. Ele literalmente luta
para que as pessoas se arrependam de seus caminhos injustos para que Ele não
tenha de julgá-los. “Assim como vivo eu, diz o Senhor DEUS, que não tenho
prazer na morte do ímpio, mas em que o ímpio se converta do seu caminho, e
viva” (Ez. 33.11).
Ele envia um profeta até mesmo à cidade pagã de Nínive por causa de Sua
misericórdia pelos seus habitantes, “que não sabem discernir entre a sua mão
direita e a sua mão esquerda” (Jonas 4.11). O próprio Pentateuco contém os Dez
Mandamentos, um dos maiores códigos morais antigos, que moldou a sociedade
ocidental. Até mesmo a restrição “um olho por um olho e um dente por um dente”
não era uma prescrição de vingança, mas uma limitação para a punição excessiva
de um crime, servindo para moderar a violência.
O juízo de Deus não tem nada de arbitrário. Quando o Senhor anuncia Sua
intenção de julgar Sodoma e Gomorra, Abraão ousadamente pergunta,
“Destruirás também o justo com o ímpio? Se porventura houver cinqüenta
justos na cidade, destruirás também, e não pouparás o lugar por causa dos
cinqüenta justos que estão dentro dela? Longe de ti que faças tal coisa, que
mates o justo com o ímpio; que o justo seja como o ímpio, longe de ti. Não
faria justiça o Juiz de toda a terra?” (Gn. 18.25).
Como um mercador do Oriente Médio barganhando por uma pechincha, Abraão
continuamente diminui seu preço, e a cada vez Deus responde sem hesitação, garantindo
a Abraão que se houvesse dez justos na cidade, Ele não a destruiria por causa
deles.
Então, o que Jeová está fazendo ao ordenar que os exércitos de Israel
exterminem os Cananeus? É precisamente por esperarmos que Javé aja justamente e
com compaixão que achamos essas histórias difíceis de entender. Como Ele pode
ordenar que soldados massacrem crianças?
Ora, antes de tentar responder essa difícil questão, seria bom que
parássemos para nos perguntarmos o que está em jogo aqui. Suponha que
concordemos que se Deus (que é perfeitamente bom) existe, Ele não poderia ter
dado tal ordem. O que se segue? Que Jesus não ressurgiu dos mortos? Que Deus
não existe? Dificilmente! Então, qual deveria ser o problema?
Eu frequentemente vejo apresentadores levantar essa questão como uma
refutação do argumento moral para a existência de Deus. Mas isso é claramente
incorreto. A declaração de que Deus não poderia ter dado tal ordem não
falsifica ou elimina nenhuma das duas premissas do argumento moral que eu
defendi:
1- Se Deus não existe, valores morais objetivos não existem.
2- Valores morais objetivos existem.
3- Portanto, Deus existe.
Na verdade, ao pensar que Deus fez algo moralmente errado ao comandar o
extermínio dos cananeus, ele afirma a premissa número 2. Então, qual é o
problema?
O problema, parece-me, é que se Deus não fosse capaz de dar tal ordem,
então as histórias bíblicas devem ser falsas. Ou os incidentes nunca realmente
aconteceram, mas são apenas parte do folclore de Israel ou então, se
aconteceram, Israel os executou em um fervor nacionalista, pensando que Deus
estava ao seu lado, declarando que Deus havia ordenado que cometessem essas
atrocidades, quando na verdade Ele não ordenara. Em outras palavras, esse
problema é, na verdade, uma objeção à inerrância bíblica.
De fato, ironicamente, muito críticos do Velho Testamento são céticos
quanto à ocorrência dos eventos da conquista de Canaã. Eles consideram essas
histórias como parte das lendas da fundação de Israel, semelhantes aos mitos de
Rômulo e Remo na fundação de Roma. Para esses críticos o problema de Deus
pronunciar tal comando desaparece.
Agora, isso põe a questão em uma perspectiva um tanto diferente! A
questão da inerrância bíblica é importante, mas não tanto quanto a existência
de Deus ou a deidade de Cristo! Se nós cristãos não pudermos achar uma boa
resposta para a questão diante de nós e formos, então, persuadidos que tal
ordem é inconsistente com a natureza de Deus, então teremos que abrir mão da
inerrância bíblica. Mas nós não deveríamos deixar o descrente que levanta essa
questão sair pensando que ela implica em mais do que implica.
Eu acredito que um bom começo nesse problema é declarar nossa teoria
ética que fundamenta nossos julgamentos morais. De acordo com a versão da ética
do mandamento divino que eu tenho defendido, nossas regras morais são
constituídas pelas ordens de um Deus santo e amoroso. Uma vez que Deus não dá
ordens a si mesmo, Ele não tem deveres morais para cumprir. Ele certamente não
está sujeito às mesmas obrigações morais que nós. Por exemplo, eu não tenho o
direito de tirar uma vida inocente. Seria homicídio se eu fizesse isso. Mas
Deus não tem essa proibição. Ele pode dar e tomar a vida segundo a Sua escolha.
Todos nós reconhecemos isso quando acusamos alguma autoridade que,
arbitrariamente tira uma vida, de “estar brincando de Deus.” As autoridades
humanas se apropriam de direitos que pertencem somente a Deus. Deus não está
sob obrigação nenhuma de aumentar minha vida em um segundo. Se Ele quiser me
fulminar agora mesmo, é prerrogativa d’Ele.
A implicação disso é que Deus tem o direito de tirar a vida dos cananeus
quando Ele achar adequado. Quanto tempo eles vivem e quando eles morrem é
decisão d’Ele.
Então, o problema não é que Deus deu um fim às vidas dos cananeus. O
problema é que Ele ordenou que os soldados Israelitas dessem um fim a eles.
Isso não seria como ordenar que alguém cometesse assassinato? Não, não é. Em
vez disso, uma vez que nossos deveres morais são determinados pelas ordens de
Deus, ordenar que alguém fizesse isso na ausência da ordem divina é que teria
sido assassinato. O ato foi moralmente obrigatório para os soldados Israelitas
em virtude da ordem de Deus mesmo que fosse errado fazê-lo em iniciativa
própria.
Na teoria do mandamento divino, então, Deus tem o direito de ordenar um
ato, que, na ausência de uma ordem divina, teria sido pecado, mas que agora é
moralmente obrigatório em virtude daquela ordem.
Certo; mas não é essa ordem contrária à natureza de Deus? Bem, vamos
analisar o caso mais de perto. Talvez seja significativo que a história da
destruição de Sodoma por Javé — junto com Suas solenes garantias a Abraão de
que se houvesse pelo menos dez justos em Sodoma, a cidade não teria sido
destruída — forma uma parte do cenário para a conquista de Canaã e a ordem de
Javé para que fossem destruídas as cidades lá. A implicação é que os cananeus não
são pessoas justas e estavam sob o julgamento de Deus.
Na verdade, antes da escravidão de Israel no Egito, Deus diz a Abraão:
“Sabes, de certo, que peregrina será a tua descendência em terra alheia,
e será reduzida à escravidão, e será afligida por quatrocentos anos... e
tornará para cá; porque a medida da injustiça dos Amorreus [um dos clãs
cananeus] não está ainda cheia.” (Gn. 15.13,16)
Pense nisso! Deus suspende Seu julgamento dos clãs cananeus por 400 anos
porque sua malignidade não havia ainda alcançado o ponto de intolerabilidade!
Esse é o Deus paciente que conhecemos nas Escrituras Hebraicas. Ele até mesmo
permite que seu próprio povo escolhido sofra em escravidão por quatro séculos
antes de determinar que os povos cananeus estejam prontos para o julgamento e
chamar Seu povo do Egito.
Na época de sua destruição, a cultura cananéia era, na verdade,
pervertida e cruel, se envolvendo em práticas como prostituição ritual e até
mesmo sacrifício infantil. Os cananeus deviam ser destruídos “para que não vos ensinem
a fazer conforme a todas as suas abominações, que fizeram a seus deuses, e
pequeis contra o SENHOR vosso Deus” (Dt. 20.18). Deus tem motivos morais
suficientes para Seu julgamento sobre Canaã, e Israel foi meramente o
instrumento de Sua justiça, assim como séculos depois Deus usaria as nações
pagãs da Assíria e Babilônia para julgar Israel.
Mas, por que tirar a vida de crianças inocentes? A terrível totalidade
da destruição foi, sem dúvida, relacionada à proibição da assimilação de noções
pagãs por Israel. Ao ordenar a completa destruição dos cananeus, o Senhor diz,
“Nem te aparentarás com elas; não darás tuas filhas a seus filhos, e não
tomarás suas filhas para teus filhos; Pois fariam desviar teus filhos de mim,
para que servissem a outros deuses” (Dt. 7.3,4). Essa ordem faz parte da
complexa rede de leis rituais judaicas para separar as práticas puras das
impuras. Para a mentalidade ocidental contemporânea, muitos dos regulamentos na
lei do Velho Testamento parecem absolutamente bizarros e sem sentido: não
misturar linho com lã, não usar os mesmos recipientes para produtos de carne e
leite, etc. O ponto principal desses regulamentos é proibir vários tipos de
mistura. Linhas claras de distinção estão sendo feitas: isso, e não aquilo.
Isso servia como uma diária e tangível lembrança de que Israel é um povo
especial separado para o próprio Deus.
Eu conversei uma vez com um missionário hindu que me disse que a
mentalidade oriental tem uma profunda tendência para a mistura. Ele disse que
os hindus, ao ouvirem o evangelho, sorriem e dizem, “Sub ehki eh, sahib, sub
ehki eh!” (“Tudo é Um, sahib, Tudo é Um! [hindus, perdoem minha
transliteração!]). Isso fez com que fosse quase impossível alcançá-los, porque
até mesmo contradições lógicas eram incorporadas no todo. Ele disse que
acreditava que a razão por que Deus deu a Israel tantas ordens arbitrárias
sobre puro e impuro era ensiná-los a Lei da Contradição!
Ao estabelecer essas dicotomias fortes e duras, Deus ensinou Israel que
qualquer assimilação da idolatria pagã é intolerável. Foi a Sua maneira de
preservar a saúde espiritual e a posteridade de Israel. Deus sabia que se essas
crianças cananéias fossem mantidas vivas, elas significariam a desintegração de
Israel. A matança das crianças cananéias não apenas serviu para prevenir a
assimilação da identidade cananéia mas também serviu como uma ilustração
esmagadora e tangível de Israel ser separada exclusivamente para Deus.
Além disso, se nós cremos, como de fato cremos, que a graça de Deus é
dada a quem morre na infância ou como crianças pequenas, a morte dessas
crianças foi na verdade a sua salvação. Nós somos tão casados a uma perspectiva
terrena e naturalista que esquecemos que aqueles que morreram tiveram a
felicidade de deixar esta terra para uma alegria incomparável no Paraíso.
Portanto, Deus não fez a essas crianças nenhum mal ao tirar suas vidas.
Então, contra quem Deus errou ao ordenar a destruição dos cananeus? Não
contra os cananeus adultos, pois eles eram corruptos e merecedores do
julgamento. Nem contra as crianças, pois elas herdaram a vida eterna. Então,
quem está ofendido? Ironicamente, eu acho que a parte mais difícil deste debate
é o aparente erro cometido contra os próprios soldados israelitas. Você pode
imaginar como seria ter que entrar em alguma casa e matar uma mulher
aterrorizada e suas crianças? O efeito brutalizante sobre esses soldados
israelitas é perturbador.
Mas então, novamente, estamos pensando de um ponto de vista
cristianizado e ocidental. Para pessoas do mundo antigo, a vida já era brutal.
A guerra e a violência eram um fato da vida para pessoas vivendo no antigo
Oriente Médio. Uma evidência para isso é que as pessoas que contavam essas
histórias aparentemente não pensaram nada sobre o que os soldados israelitas
foram ordenados fazer (especialmente se essas foram lendas sobre a fundação da
nação). Ninguém estava torcendo as mãos por causa dos soldados terem que matar
os cananeus; esses que fizeram isso eram heróis nacionais.
Além disso, eu volto ao meu ponto acima. Nada poderia ilustrar tão bem
para os israelitas a seriedade de seu chamado como um povo separado somente
para Deus. Javé não é alguém com quem se brincar. Ele está falando sério e, se
Israel apostatar, a mesma coisa poderia acontecer com eles. Como C.S. Lewis
coloca, “Aslan não é um leão domado.”
Ora, como isso se relaciona à jihad islâmica? O Islã vê a violência como
a maneira de propagar a fé muçulmana. O Islã divide o mundo em dois campos: a
dar al-Islam (Casa de Submissão) e a dar al-harb (Casa de Guerra). A primeira
são as terras que foram submetidas pelo Islã; a última são as nações que ainda
não foram submetidas. É assim que o Islã realmente vê o mundo!
Em contraste, a conquista de Canaã representou o julgamento de Deus
sobre esses povos. O propósito não foi convertê-los ao judaísmo! A guerra não
estava sendo usada como um instrumento de propagação da fé judaica. Além disso,
o massacre dos cananeus representou uma circunstância histórica incomum, não
uma maneira regular de comportamento.
O problema com o Islã, então, não é que este tem a teoria moral errada;
mas sim que tem o Deus errado. Se os muçulmanos acham que nossos deveres morais
são constituídos pelas ordens de Deus, então eu concordo com eles. Mas
muçulmanos e cristãos diferem radicalmente quanto à natureza de Deus. Os
cristãos acreditam que Deus é todo-amoroso, enquanto os muçulmanos acreditam
que Deus ama apenas os muçulmanos. Alá não tem amor por descrentes e pecadores.
Então, eles podem ser mortos indiscriminadamente. Além disso, no Islã a
onipotência de Deus pisa em tudo, até mesmo em Sua própria natureza. Ele é,
portanto, absolutamente arbitrário em Seu tratamento com a humanidade. Em
contraste, os cristãos sustentam que a natureza santa e amorosa de Deus
determina o que Ele ordena.
A questão, então, não é “qual é a teoria moral correta?”, mas “qual é o
Deus verdadeiro?”
William Lane Craig