“Devemos mostrar que nossas Escrituras não estão em conflito com o que quer que possa demonstrar a natureza das coisas a partir de fontes confiáveis” (Expressão de Agostinho, citada por Rick Nañez no livro Pentecostal de Coração e Mente, pág. 295)
Antes de demonstrar a possibilidade de vivenciar a fé cristã exercitada pelo intelecto (em uma próxima postagem), utilizando alguns excertos exemplificativos, gostaria de considerar rapidamente três questões: primeiro, a ausência de estímulo intelectual nos ambientes cristãos recentes; segundo, a viabilidade de uma apologética cristã sem os termos bíblicos costumazes e, terceiro, a consciência de que argumentos racionais não são em si, aquilo que convence e converte, existe um poder místico num outro plano dimensional que é capaz e necessário para o processo de salvação.
Em primeiro lugar, a história do movimento pentecostal tem demonstrado que a ênfase na experiência pessoal, espiritual e emotiva trouxe seus frutos positivos para o evangelicalismo brasileiro, ao mesmo tempo em que esqueceu alguns pontos essenciais de formação cristã, e entre eles está o estímulo ao uso do intelecto. Rick Nañez, pastor pentecostal assembleiano, escreve de forma elucidativa sobre o assunto em seu livro Pentecostal de Coração e Mente (Editora Vida). Ele destaca que “a corrente elétrica do desenvolvimento intelectual” dos crentes foi interrompida em algum momento da história da igreja. Vários motivos poderiam ser apontados para este “travamento”, mas não é o foco do presente artigo. Porém, um deles pode ser colocado como ponto para reflexão: muitos discursos antiintelectuais de líderes nos púlpitos das igrejas contribuíram e ainda contribuem para o retardo intelectual dos cristãos. Como exemplo, é citado por Nañez a abordagem de uma grande autora a respeito da mente. Discutindo os motivos que trazem confusão para o povo de Deus, Joyce Meyer cita o raciocínio como o grande culpado. (Idem Pentecostal de Coração e Mente, pág. 137) Parece que a autora não se dá conta de duas coisas: primeiro, é exatamente o contrário da sua afirmação. A falta do uso do intelecto é o que tem causado muita confusão no meio do povo de Deus e, segundo, o raciocínio deve ser valorizado também com vistas nos de fora, como uma forma eficaz de evangelização. É exatamente a partir de uma compreensão como esta que será possível a defesa da fé cristã diante de exposições racionais contra ela.
Tenho verificado ultimamente que o problema do ateu e do cristão parece ser o mesmo: um não quer ler a literatura do outro. Quando um ateu resolve sinceramente examinar a Bíblia e outros livros cristãos, isento de preconceitos e levando em conta, por exemplo, dados de cronologia antiga, descobertas arqueológicas, geografia antiga, hermenêutica, lingüística, antropologia, cultura, linguagem coloquial para fatos científicos, antropomorfismos, dentre outros, há grande chance de ele se render ao sublime Deus e Sua Palavra. E quando um cristão resolve exercitar sua intelectualidade lendo autores que declaram em seus escritos não crer em Deus, logo ele é tomado pela necessidade de buscar amparo em documentação científica, não para crer, mas para equipar-se na defesa da sua crença, e assim, acaba mais convicto de que está trilhando o caminho certo. Como disse Willian Lane Craig: “A apologética fortalece a fé dos crentes em Cristo” (Apologética Contemporânea: a veracidade da fé cristã. Willian Lane Craig, São Paulo: Vida Nova, 2012. Pág. 21).
C. S. Lewis, um dos grandes apologistas cristãos do século vinte, captou logo cedo essa necessidade. Ele assim se expressa: “Deus não detesta menos os intelectualmente preguiçosos do que qualquer outro tipo de preguiçoso. Se você está pensando em se tornar cristão, eu lhe aviso que estará embarcando em algo que vai ocupar toda a sua pessoa, inclusive o cérebro... o cristianismo é em si mesmo uma educação. Foi por isso que um crente ignorante, como Bunyan, foi capaz de escrever um livro que espantou o mundo inteiro” (Cristianismo Puro e Simples. C. S. Lewis. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2009. Pág, 102-103).
Em segundo lugar, a expressão citada no início do texto revela algo não muito aceito em vários círculos cristãos, notadamente os pentecostais: considerar fontes externas (aquelas que não são produzidas pelo próprio círculo) como possíveis expressões da verdade, embora nem todo o conjunto da fonte seja verdadeiro. Por exemplo, um filósofo ou cientista que tenta desacreditar determinadas passagens da Bíblia Sagrada, poderá em outro momento defender, de forma direta ou indireta, outra passagem. Se esta defesa estiver em um de seus escritos, será por isso desconsiderada como verdade? Discordar de um posicionamento de determinada pessoa ou grupo significa que ‘tudo’ que essa pessoa ou grupo disser estará errado?
Sabemos que muitos erram num ponto de discussão e acertam em outros. Portanto, a busca pela verdade deve ser vista a partir do parâmetro formulado por Agostinho, no sentido de que “toda verdade é verdade de Deus”, não importando onde ela esteja. No entanto, esta não é a compreensão que circunda a maioria dos cristãos brasileiros. Não estamos dispostos, num primeiro momento, a aceitar a assertiva de que podemos encontrar explicações racionais (não confundir com o racionalismo) para muitos assuntos bíblicos. Charles Finney disse em sua Teologia Sistemática: “Você foi feito para pensar... desenvolver suas capacidades pelo estudo. Deus determinou que a religião exigisse pensar, pensar intenso, e desenvolvesse nossa capacidade de pensamento. A própria Bíblia é escrita em estilo tão condensado para exigir o mais intenso estudo” (Teologia Sistemática, de Charles Finney. Rio de Janeiro: CPAD, 2001. Pág. 23).
O sedentarismo intelectual dos evangélicos brasileiros explica a ignorância que se têm sobre as armas que os formadores de opinião utilizam em temas atuais como, por exemplo, a união estável entre pessoas do mesmo sexo, a educação materialista, evolucionismo versus criacionismo, a banalização do divórcio, o direito da mulher sobre seu corpo no que se refere ao aborto, o relativismo moral em detrimento da verdade absoluta e etc.
Comentando sobre a necessidade da apologética cristã como meio de evangelização, Willian Lane Craig coloca a questão indicando a utilidade que ela tem na prática do evangelismo. Várias referências são expostas tais como a do apóstolo Paulo disputando com os judeus sobre as Escrituras (At 17.2,3; 19.8; 28.23,24). Interessante que, na última referência indicada, a expressão bíblica diz que Paulo, usando a lei de Moisés e os profetas, “procurava persuadi-los à fé em Jesus”. Porém, quando a discussão era com os filósofos epicureus (que seguiam Epicuro) e estóicos (que seguiam Zeno), no Areópago, ele faz sua argumentação acrescentando às suas palavras outros filósofos como Epimênedes (Séc. VI a.C.), Cleantes e Arato (At 17.28). Em sua epístola à Tito, Paulo também cita Epimênedes novamente (Tt 1.12). Ou seja, se a expressão da verdade estiver em algum escrito secular, ela é útil na condução de argumentos que persuadam à Cristo. Não é à toa que Paulo usa expressões como “persuadimos os homens à fé” e “levando cativo todo entendimento à obediência de Cristo” (2 Co 5.11; 10.5). A propósito, outros escritos extra-bíblicos são indicados nas Escrituras, demonstrando que, embora o conteúdo total não seja inspirado, àquele citado o é, e, portanto, contêm a verdade divina. Este é o caso do Livro de Jasher, mencionado em Josué 10.13 e 2 Samuel 1.18, e o Livro de Enoque (Jd 14).
E não podemos esquecer que Paulo apóstolo, quando diz para Timóteo evitar as idéias contraditórias da “falsamente chamada ciência” (1 Tm 6.20), sua expressão sugere que existe também uma ciência verdadeira. E uma ciência verdadeira é aquela que reconhece até onde o método científico é viável na explicação de fatos, fazendo diferença entre teoria e lei científica e não insistindo em teorias que já foram descartadas pelas próprias descobertas científicas. O escritor Tim LaHaye, em seu excelente livro Um homem chamado Jesus, cita alguns nomes de acadêmicos e eruditos que foram impactados com a credibilidade das narrativas do evangelho e, portanto, souberam reconhecer até onde a ciência vai, e como ela se adéqua ao pensamento cristão. Dentre alguns nomes estão Isaac Newton, Blaise Pascal, Willian Gladstone e Louis Pasteur (Um homem chamado Jesus. Tim LaHaye. Campinas, SP: United Press, 1998. Pág. 19).
Tomás de Aquino foi um filósofo cristão e grande expoente da Escolástica, uma filosofia medieval que indicava o pensamento crítico e a dialética como algo perfeitamente conciliável com a fé cristã. Ele acreditava que entre fé cristã e razão não pode haver contradição. Existem coisas que podem perfeitamente ser compreendidas pela razão, como a existência de Deus, e coisas que podem ser aceitas por fé, como a Trindade. Porém, uma não contradiz a outra.
Willian Craig ainda comenta o fato de alguns grupos de pessoas reagirem a argumentos e evidências racionais, tais como engenheiros, profissionais da medicina e advogados. São pessoas que, mesmo em número menor, são grandes em influência. De fato, escritores e pregadores cristãos que enfatizam o uso do intelecto, como C. S. Lewis, Lee Strobel, Josh McDowell, Ravi Zacarias, Norman Geisler e Willian Lane Craig têm levado e estão levando muitos a Cristo.
Em terceiro lugar, e muito necessário diante do que já foi exposto, é preciso considerar a seguinte ressalva: os argumentos racionais, por melhores que sejam não se constituem armas suficientes para convencer e levar as pessoas à conversão. Se assim fosse, elementos essenciais à vida cristã como a oração, leitura bíblica, fé e a atuação do Espírito Santo, poderiam ser descartados e a própria prática da vida cristã não faria sentido. O objetivo final, num processo de evangelização, é fazer com que corações endurecidos se quebrantem e rendam-se a Deus e sua Palavra. Isso se coaduna com a idéia de C. S. Lewis de que argumento racional não produz crença, mas mantêm um ambiente em que a fé possa florescer.
Como afirmou Willian Lane Craig, o Espírito Santo “pode agir também por meio da argumentação racional. Devemos apelar à mente, e não apenas ao coração. Se um incrédulo faz a objeção de que a Bíblia não é confiável porque é uma tradução de uma tradução de uma tradução, a resposta não está em dizer-lhe que se acerte com Deus. A resposta está em explicar que temos excelentes manuscritos da Bíblia nas línguas grega e hebraica – e depois dizer-lhe que se acerte com Deus!” ( Idem Apologética Contemporânea, de Willian Lane Craig. Pág. 52).
Precisamos estar equipados com argumentações lógicas a favor da nossa crença, para o embate em benefício da fé, embora saibamos que ela mesma não está apoiada estritamente em razões lógicas. Há este apoio também.
Concluo, portanto, que o uso da intelectualidade numa abordagem sobre os elementos da fé cristã é necessário. Principalmente em ambientes acadêmicos. E o uso de outras fontes, além da nossa fonte primaz, a Bíblia Sagrada, também é necessário.
Cláudio Ananias
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